A santidade de Alckmin
Eis a face oculta do presidenciável tucano: à frente do governo de São Paulo, ele tentou controlar investigações, deu sustentação ao modelo de aliança com empreiteiras que resultou na Lava Jato e manteve as portas abertas para o fisiologismo
03.08.18
O envolvimento de Geraldo Alckmin com o sagrado vem de longa data. No final dos anos 1970, quando exercia seu primeiro cargo executivo na Prefeitura de Pindamonhangaba, no interior paulista, ele inaugurou uma rua com o nome do sacerdote espanhol que fundou a Opus Dei, uma corrente radicalmente conservadora do catolicismo. O homenageado seria transformado em santo pelo Vaticano em 2002. E Alckmin também, alguns anos depois, só que em circunstâncias bem menos nobres. O tucano foi apontado, nas investigações da Operação Lava Jato, como o “Santo” das planilhas de distribuição de dinheiro da Odebrecht. Ele nega. Com base no testemunho de um dos delatores da companhia, sustenta que “Santo”, na verdade, era um burocrata de uma estatal do governo paulista. Mas a alcunha o incomoda enormemente. Tanto é assim que, em seu site na internet, há uma nota que tenta explicar: “Alckmin não é o Santo da lista da Odebrecht”. Nem de lista nenhuma. O homem que o PSDB ungirá neste fim de semana como o seu candidato ao Palácio do Planalto está longe, bem longe, de gozar das virtudes exigidas para a canonização. Por trás da imagem do homem cordato e hígido, há um personagem que carrega traços marcantes da velha política. Com jeito, o Alckmin que você não conhece é hábil em travar investigações capazes de comprometê-lo e, nas quatro vezes em que governou São Paulo, deu sustentação ao mesmo modelo de relacionamento com empreiteiras que acendeu o pavio da Operação Lava Jato – aquele em que obras são trocadas por polpudos repasses de dinheiro a políticos.
Vereador, prefeito, deputado estadual e federal, vice-governador e, finalmente, governador mais longevo da história de São Paulo, o tucano tem um jeito de negociar com aliados que pouco difere dos métodos reinantes em Brasília nas últimas décadas e que deram azo a sucessivos escândalos. Para se ter uma ideia, apenas em seu último mandato como governador, exercido entre 2015 e 2018, Alckmin distribuiu secretarias para nove partidos. Muitas delas ficaram nas mãos de gente sem qualquer experiência na área. Outras práticas antigas também integraram a cartilha do tucano, como tirar deputados eleitos da Câmara para que suplentes ligados a ele assumissem os mandatos. Ou, ainda, impedir a abertura de comissões parlamentares de inquérito na Assembleia Legislativa: 69 CPI’s foram barradas entre 2001 e 2006, 23 entre 2011 e 2014 e 14 depois de 2015. Ao todo, 106 investigações parlamentares que tinham por alvo supostas irregularidades no governo nem sequer foram abertas. Crises políticas também passaram a ser contidas no velho esquema do toma-lá-dá-cá. No ano passado, após uma ameaça de rebelião em sua base parlamentar, Alckmin não só liberou emendas para os deputados se aquietarem como permitiu que elas fossem incluídas no orçamento deste ano com o compromisso de que seriam pagas. Nada diferente do que ocorre há anos em Brasília. Na ponta do lápis, serão 5 milhões de reais para cada um dos deputados estaduais. Além disso, inaugurações de obras foram concentradas no final do mandato — entre janeiro e abril deste ano, pouco antes de ele deixar o cargo de governador para se candidatar a presidente, foram 50 eventos dessa natureza, um a cada dois dias. Detalhe: muitas das obras nem sequer estavam concluídas.
Como todo político tradicional, há também várias promessas não cumpridas. As obras do chamado Trecho Norte do Rodoanel, o grande anel viário que circunda a capital paulista interligando as rodovias que nela chegam, foram iniciadas em 2013 com previsão de conclusão em 2016. Devem ser entregues apenas em 2019, com custo 30% superior ao inicial. Uma linha do metrô foi licitada em 2013 com promessa de entrega em 2015, mas só foi implantada de verdade neste ano. Outra promessa, de 2002, previa a existência do “Expresso Aeroporto”, um trem que levaria os passageiros da região central da capital paulista até o aeroporto de Guarulhos por 20 reais. O projeto acabou descartado. Decidiu-se substituí-lo por uma linha de metrô. Mas aí entra um arremedo de solução que, ao mesmo tempo em que é um exemplo de gestão ineficiente, mostra a submissão do governo aos interesses empresariais. A linha deveria chegar até o terminal 2, o mais movimentado do aeroporto, mas a concessionária de Guarulhos não autorizou, porque queria construir um shopping no meio do percurso. Resultado: o usuário precisa descer bem antes e, em seguida, tomar um ônibus para chegar até o terminal.
Lenílson Gomes/GESP
Obras do Rodoanel: a Lava Jato investiga desvios milionários em contratos
Ao longo de seus governos, Alckmin contou com a fragilidade da oposição. O PT, cada vez mais enrolado no governo federal, não tinha força e nem discurso suficientes para incomodá-lo. Ainda assim, o tucano foi e ainda é alvo de acusações graves. Uma delas, verbalizada por alguns de seus principais opositores, versa sobre um suposto acordo branco entre o governo estadual e uma perigosa facção criminosa que domina os presídios. Por meio desse suposto acordo, dizem os críticos do governador, o grupo teria se comprometido a evitar assassinatos no estado — Alckmin propagandeia a redução no número de homicídios — e, em troca, o governo faria vista grossa para os negócios do bando, que não para de crescer. Diz o deputado estadual petista José Américo, um dos porta-vozes da acusação: “Há um acordo tácito do governo com o crime organizado e isso levou à redução dos crimes de homicídio no estado de São Paulo. As organizações criminosas desestimulam os homicídios em toda a periferia com o objetivo de reduzir a ação da polícia sobre suas atividades”. No Ministério Público, promotores pouco afeitos ao tucano dão força à suspeita: dizem que das 170 unidades prisionais paulistas, apenas 23 têm bloqueadores de celulares. Seria, segundo eles, um sintoma da tal condescendência com a facção. Aliados do tucano, evidentemente, rechaçam com veemência a acusação.
Há outros dados, mais objetivos, que devem facilitar o trabalho dos adversários de Alckmin durante a corrida presidencial. A educação pública em São Paulo também patina e vários índices oficiais apontam que o aluno da rede pública no estado é deficiente no aprendizado de matemática e português. O sistema educacional paulista chegou a ser alvo de reparos em uma análise recente das contas do tucano no Tribunal de Contas.
Para blindar-se no jogo da política, Alckmin se cerca de auxiliares ligados ao próprio Ministério Público. Desde que assumiu o cargo com a morte de Mário Covas, em 2001, o tucano potencializou um antigo formato herdado do ex-governador do MDB Orestes Quércia, já falecido, de atrair para áreas-chave do governo integrantes da instituição que é responsável por, dentre outras funções, investigar e fiscalizar o governo. Os dois últimos procuradores-gerais de Justiça de São Paulo, o cargo máximo do MP estadual, integraram o governo de Alckmin após deixarem o posto. Um deles foi nomeado secretário de Justiça. O outro foi escolhido para a Secretaria de Segurança Pública. Na área de segurança, por sinal, sete dos últimos oito secretários vieram do MP. Havia ainda vários promotores espalhados pelo segundo escalão do Poder Executivo estadual. A aliança estratégica também passa pelo Judiciário. Um ex-presidente do Tribunal de Justiça deixou o posto, em 2016, para assumir a Secretaria de Educação. Pode até ser coincidência, mas o bilionário setor de transportes, hoje alvo principal do braço paulista da Lava Jato, foi controlado na era Alckmin por um promotor. Era sob a alçada dele que ficava a Dersa, a estatal paulista responsável pelas obras viárias. E foi justamente esse promotor quem nomeou para a companhia Laurence Casagrande, preso em junho sob suspeita de corrupção em obras no estado.
Jeff Dias/GESP
Laurence Casagrande, apontado como operador tucano: Alckmin o defende com vigor
Nenhuma grande investigação contra altas autoridades locais avança em nível estadual em São Paulo. As apurações no Ministério Público só começaram a andar depois que a Odebrecht fechou o acordo de delação premiada com a Procuradoria-Geral da República, em Brasília. Paralelamente, casos que podem respingar em Alckmin tomam rumos, digamos, estranhos. Delatado por executivos da Odebrecht que o acusaram de receber dinheiro de caixa dois para financiar suas campanhas em 2010 e 2014, o tucano passou à condição de investigado. Como perdeu o foro privilegiado após deixar o governo, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que a acusação deveria ser enviada para o MP de São Paulo. Um promotor decidiu abrir uma investigação por improbidade administrativa, mas o procurador-geral, Gianpaolo Smanio, retirou o inquérito das mãos dele. O promotor se queixou ao Conselho Nacional do Ministério Público, em Brasília, e Smanio recuou. O caso é um dos que mais incomodam Alckmin porque envolve seu cunhado, Adhemar César Ribeiro, conhecido captador de recursos para as campanhas do tucano. Situações como essa são relativamente comuns. A cúpula do MP tenta, sempre que possível, levar na rédea curta as apurações com potencial de gerar danos ao ex-governador. “Não é que o Ministério Público aqui é próximo ao Palácio dos Bandeirantes. Ele é o próprio Palácio dos Bandeirantes”, disse a Crusoé, sob reserva, um promotor com longa trajetória no MP estadual. Para outro promotor, a instituição aos poucos passou a se guiar por uma máxima: é possível alcançar apenas “os peixes pequenos, nunca os grandes, caso contrário a investigação não vai adiante”.
A pesquisadora Luciana Zaffalon, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), analisou em sua tese de doutorado na Fundação Getúlio Vargas a relação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de São Paulo. Concluiu haver uma troca de interesses que cria um ambiente de proteção mútua entre eles no estado mais rico do país. “A existência de freios e contrapesos é praticamente ausente no estado de São Paulo, o que se verifica sobretudo frente à repercussão da conjugação de vontades do Poder Executivo e das carreiras jurídicas”, diz ela no trabalho. O MP não informou a Crusoéquantos promotores e procuradores deixaram a instituição para trabalhar no governo nem a quantidade de procedimentos abertos para apurar casos relacionados ao ex-governador e a seus secretários desde 2002, mas em nota ressaltou que os integrantes da instituição que aceitam convite para ocupar cargos no Poder Executivo o fazem em “caráter pessoal”.
O mais próximo que o MP chegou de um tucano com cargo relevante foi no caso que apontou o então presidente da Assembleia, Fernando Capez, como um dos envolvidos na chamada “máfia da merenda”, que desviava recursos na rede pública de ensino. Entretanto, nos bastidores do PSDB e do próprio MP, há a avaliação de que a investigação só avançou porque, com a Lava Jato à toda em nível federal, era preciso mostrar que São Paulo também “cortava na própria carne”. E, além disso, porque colocava em polos opostos dois tucanos que se bicavam por poder sob a sombra de Alckmin. Um deles era o próprio Capez e o outro, o então secretário de Segurança Alexandre de Moraes, hoje ministro do Supremo Tribunal Federal. É das contendas internas no PDSB, por sinal, que surgem os elementos que têm iluminado as investigações da Lava Jato sobre a relação do partido — e do próprio Alckmin — com as empreiteiras.
O braço paulista da operação hoje se divide em duas vertentes, e é assim mesmo que elas são tratadas internamente: uma mira o “grupo de Serra” e a outra, o “grupo de Alckmin”. A investigação é dividida conforme a maneira que, segundo os procuradores, o esquema funcionava. A parte que eles relacionam a Serra envolve a construção do Trecho Sul do Rodoanel, além de trechos da marginal do rio Tietê e de uma conhecida avenida da capital paulista, a Jacu-Pêssego. As obras foram idealizadas pela Dersa quando Serra era governador e a estatal tinha como diretor de engenharia o notório Paulo Vieira de Souza, também conhecido como Paulo Preto. Já a Lava Jato “de Alckmin” envolve principalmente o Trecho Norte do Rodoanel. O idealizador da obra é Laurence Casagrande, que assumiu a Dersa sob Alckmin, em 2011, e ficou no cargo até 2017. Depois, ele ainda foi secretário de Logística e Transportes e presidente da Companhia Energética de São Paulo. Laurence está preso desde junho. Um relatório da Polícia Federal aponta desvios e sobrepreços em obras na ordem de 131 milhões de reais. Para os investigadores, o “homem de Alckmin” liderava um esquema semelhante àquele gerenciado por Paulo Preto: coletava propinas para financiar campanhas do grupo do presidenciável tucano.
Pedro Ladeira/Folhapress
A solenidade em que o tucano recebeu o apoio do chamado Centrão: aliados enrolados
Ao longo de seus governos em São Paulo, Alckmin manteve com as gigantes da empreita uma relação parecida com a que elas mantinham com o governo federal — e que originou, na esfera nacional, a descoberta pela Lava Jato de um bilionário esquema de corrupção. Todas as grandes empreiteiras do petrolão, de Odebrecht à OAS, de Queiroz Galvão à Camargo Corrêa, firmaram negócios bilionários com o governo paulista ao longo dos anos em que o tucano esteve no poder. E de alguns desses negócios, conforme surgiu em depoimentos prestados como parte de acordos de delação premiada, saíram pagamentos a gente ligada a ele. Incluindo o cunhado apontado como arrecadador de suas campanhas. Ele é acusado de ter obtido 10,3 milhões de reais da Odebrecht durante as campanhas de 2010 e 2014.
Geraldo Alckmin será oficialmente anunciado como o candidato do PSDB ao Planalto neste sábado, 4. Esta é a segunda vez que ele disputa o cargo de presidente da República. Na primeira, em 2006, perdeu para Lula numa eleição em que conseguiu ter mais votos no primeiro turno do que no segundo. A jornada de 2018 começou penosa. O tucano é visto com desconfiança até mesmo por seus correligionários. Uma parte do partido, preocupada com seu baixo desempenho nas pesquisas, chegou a tentar substituí-lo — um dos cotados para o lugar era o ex-prefeito paulistano João Doria, seu ex-pupilo. Alckmin resistiu. Mas, ainda estacionado nas pesquisas, não se livrou do fogo amigo. E tudo indica que não se livrará tão cedo. Parte da resistência é motivada pelo temperamento do presidenciável, que muitos tratam como inconfiável. Vide o que disse a Crusoé o velho tucano Arnaldo Madeira, um dos fundadores do partido e ex-secretário da Casa Civil de Alckmin: “O Geraldo não desenvolve relações de respeito mútuo com as pessoas. É fechado. Dissimulado. Por isso, não se encontram políticos entusiasmados com sua candidatura. Veja a diferença entre as adesões ao Geraldo e ao Mário Covas. Com este havia adesões entusiasmadas e naturais. Com o Geraldo, o argumento é de que ele é o menos pior. Além da evidente falta de qualificação técnica e profissional”.
A despeito dos ataques e do baixo desempenho experimentado até aqui entre os eleitores, Alckmin ganhou algum fôlego ao fechar um grande arco de alianças, após intrincada negociação com o chamado Centrão, um ajuntamento do que há de mais fisiológico na política brasileira. Ao todo, dez partidos deverão estar ao lado do tucano, o que lhe dará quase metade do tempo total da propaganda eleitoral na televisão. No discurso que fez na convenção que o lançou candidato em 2006, Alckmin atacou ferozmente o esquema do mensalão e os partidos comprados na ocasião pelo PT. Disse ele: “Que tempos são esses, em que um procurador-geral da República denuncia uma quadrilha de 40 criminosos e no meio da lista estão ministros, auxiliares do presidente, amigos do presidente?”. Passados doze anos, os mensaleiros atacados pelo tucano, como Valdemar Costa Neto e Roberto Jefferson, viraram fiadores de sua própria campanha. Nada mais ilustrativo de como a política brasileira dá voltas e não sai do lugar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário