segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

A chance da Lava Toga

A chance da Lava Toga

A delação de Orlando Diniz, que pagava fortunas a advogados e parentes de altos juízes, coloca o Ministério Público diante da oportunidade de avançar sobre o Judiciário. No interesse do próprio Judiciário
21.12.18
Crusoé 34
Na manhã de 23 de fevereiro, o braço da Lava Jato no Rio de Janeiro dava partida a uma nova etapa da operação. A intenção era desarticular mais um dos inúmeros esquemas do ex-governador Sérgio Cabral. O alvo principal dos mandados de busca naquele dia era o empresário Orlando Diniz, presidente da Federação do Comércio do estado (Fecomércio-Rio), investigado sob suspeita de ajudar o amigo Cabral em operações de lavagem de dinheiro. Em uma tabela de duas páginas produzida pela Receita Federal e anexada ao inquérito, havia sinais de que aquela fase da Lava Jato ia bem além do Rio. 
Na verdade, eram indícios de que, a partir de Diniz, os investigadores poderiam avançar sobre a velha suspeita de que advogados de sobrenomes famosos operam um esquema de facilitação de sentenças em alguns dos tribunais mais importantes do país
As planilhas elencavam 44 bancas de advocacia que receberam incríveis 118 milhões de reais da Fecomércio entre 2012 e 2017. Algumas delas, detentoras de ligações estreitas com gabinetes de cortes superiores de Brasília.
Preso, Orlando Diniz acabou solto em junho, por decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Mesmo assim, o processo avançou. Denunciado e réu por cinco casos de corrupção, dois atos de lavagem de dinheiro e organização criminosa, ele decidiu fazer um acordo de delação premiada que, se bem explorado e negociado, dará aos investigadores a oportunidade de finalmente deflagrar a Operação Lava Toga e avançar, assim, sobre um bastião que a Lava Jato não conseguiu explorar a contento em quatro anos de existência. O potencial em torno das relações (e das transações) de Orlando Diniz é tão grande que, na semana passada, quando veio a público a notícia de que ele decidira delatar, instalou-se um clima de pânico em Brasília.
No STJ, Orlando Diniz obteve vitórias importantes em batalhas judiciais, ao mesmo tempo em que despejava uma pequena fortuna em escritórios de parentes de ministros e adjacências. Aliás, o montante listado nas planilhas, de 118 milhões de reais, pode ser apenas uma parte. Os documentos apreendidos pelos policiais e procuradores na Fecomércio mostraram que as contas da entidade, há anos nas mãos de Diniz, eram caóticas. A soma dos valores das notas fiscais pagas divergiam, por exemplo, do total constante nas planilhas que a Receita conseguiu organizar. Os investigadores descobriram que da relação com o ex-governador Sérgio Cabral com Orlando Diniz saíram pagamentos vultosos para o caixa de propina do emedebista. Nada menos que 7 milhões de reais foram repassados pela Fecomércio à mulher de Cabral, Adriana Ancelmo. Oficialmente, os repasses ocorreram a título de pagamentos por contratos de prestação de serviços jurídicos. Mas a Lava Jato suspeita que tudo não passava de fachada para encobrir mais uma frente de negócios do ex-governador.
A parte que torna a história um possível estorvo para ministros de tribunais superiores de Brasília também envolve pagamentos polpudos sob a rubrica de contratos de advocacia. 
Escritórios ligados a pelo menos dois ministros do STJ receberam mais de 13 milhões de reais da Fecomércio, no período em que a entidade protagonizou uma guerra de liminares no tribunal. Há mais operações obscuras e pendentes de investigação no rol de desembolsos. A banca que agora defende o ex-presidente Lula, por exemplo, amealhou nada menos que 38 milhões de reais para um contrato destinado a obter uma “solução política” nos tribunais e incluiu até a intermediação de um doleiro.
O acordo de delação de Orlando Diniz está em negociação ainda na primeira instância. Significa que, por ora, ele não citou nominalmente ministros de tribunais superiores. Mas fontes envolvidas nas tratativas admitiram a Crusoé que, a depender do caso, apenas algumas peças bastam para que a Procuradoria monte seu próprio quebra-cabeças. Essa leitura faz sentido. Por cautela, Diniz pode não avançar sobre suas relações com ministros, mas pode explicar, por exemplo, as razões pelas quais decidiu contratar escritórios de advocacia ligados a eles. Seria o suficiente para, como diz a fonte, juntar as peças e, então, dar partida à nova etapa da apuração. Se seguir seu curso natural, em breve o caso deverá aterrissar na Procuradoria-Geral da República, a quem cabe investigar ministros de tribunais superiores, detentores de foro privilegiado. Procurado, o advogado de Diniz, Roberto Podval, não quis falar sobre o assunto.
A Lava Jato já teve, desde que foi deflagrada pela primeira vez, algumas oportunidades de avançar sobre as suspeitas relacionadas à turma da toga. Mas, até hoje, nunca foi adiante. Talvez porque já tivesse frentes de batalha suficientemente duras para vencer. Nos poderes Executivo e Legislativo, a operação foi devastadora. Pôs na barra da Justiça três ex-presidentes da República (um deles, Lula, está na cadeia), prendeu ex-ministros e dezenas de executivos de estatais envolvidos em desvios. No Congresso Nacional, muitos deputados e senadores foram pilhados como beneficiários dos esquemas. No Judiciário, as pistas começaram a aparecer a partir da devassa nos arquivos das grandes empreiteiras do país, como Odebrecht e OAS.
Um dos exemplos envolve o ministro Benedito Gonçalves, do mesmo STJ. A Lava Jato interceptou diversas mensagens em que o ministro aparecia pedindo favores ao empreiteiro Léo Pinheiro, da OAS. Uma delas envolvia um pedido de Gonçalves para que Pinheiro usasse seu trânsito livre junto ao governo do PT para interceder em favor de um “projeto pessoal”. Era uma vaga no Supremo, com a qual o ministro sonhava. Havia ainda pedidos para que a empreiteira contratasse os serviços da mulher e do filho de Benedito Gonçalves, por exemplo. De outra delação, a do ex-senador petista Delcídio do Amaral, surgiram suspeitas contra outros dois ministros do STJ, Marcelo Navarro e Francisco Falcão, suspeitos de articular em favor de interesses da Odebrecht na corte. Mais recentemente, do acordo de colaboração da JBS, apareceram outros indícios, de novo apontando para integrantes do STJ.
O problema é que, como é o próprio Judiciário o encarregado de dar seguimento a casos assim, a dificuldade de avançar sobre as suspeitas aumenta sensivelmente. Investigações até são abertas, mas costumam seguir cercadas por um secretismo incomum. Em alguns casos, como o que envolveu os ministros Navarro e Falcão, só se sabe o desfecho quando são arquivadas. O inquérito aberto para investigar Benedito Gonçalves se perdeu no limbo, no Supremo. Na maioria das vezes, mesmo outros ministros, colegas de tribunal dos investigados que têm interesse em acompanhar o desdobramento dos casos, têm dificuldades de saber o que se passa. “O STJ nunca fez uma reunião administrativa para se discutir o caso do Benedito, por exemplo”, diz um integrante da corte.
A delação de Orlando Diniz, se bem explorada pelos investigadores, é uma oportunidade de ouro para ajudar a elucidar ao menos uma parte das transações milionárias que se dão à sombra dos tribunais. 
De partida, vale exigir respostas para perguntas simples. O que justifica uma entidade de classe como a Fecomércio, que já tinha altos contratos com advogados, passar a recorrer a parentes de ministros do STJ para tocar seus processos? O que, afinal, eles ofereciam? A federação é uma entidade de classe com orçamento na casa de 1 bilhão de reais por ano. O valor é arrecadado em taxas cobradas dos comerciantes. Esse portento se transformou em um feudo de Orlando Diniz e seus amigos. Foi para permanecer no cargo de presidente que ele deflagrou uma cruenta batalha nos tribunais. Para fazer frente a um grupo que tentava destroná-lo, Diniz rasgou as regras internas. Contratos de serviços advocatícios, que custavam algumas centenas de milhares de reais, passaram à casa dos milhões de reais.
A trama fica ainda mais nebulosa pelo fato de ele ter adotado, como regra, alguns truques para tentar impedir que o caminho dos repasses pudesse ser esquadrinhado. A certa altura, ele determinou que, após feitos os pagamentos, as notas fiscais fossem armazenadas fora da Fecomércio. A Lava Jato descobriu que as contratações de advogados não obedeciam a critérios técnicos e muito menos passavam por avaliação jurídica. A ordem partia diretamente de Orlando Diniz. A intensa disputa judicial multimilionária que poderia defenestrá-lo da presidência e tirar dele a chave do generoso cofre da entidade foi parar no STJ. Houve um vai-e-vem de liminares. O relator do caso era o ministro Napoleão Nunes Maia.
Esmiuçando os pagamentos à Fecomércio, porém, os investigadores chegaram a parentes de outros dois ministros. Humberto Martins é pai do advogado Eduardo Martins, que, aos 31 anos, recebeu quase 13 milhões da federação. 
O escritório do jovem advogado Paulo Salomão recebeu outro tanto. Na declaração da Fecomércio à Receita, aparece o valor de 500 mil reais, mas nas notas fiscais descobertas pelos investigadores, o valor é outro: quase 5 milhões. Paulo é sobrinho do ministro Luis Felipe Salomão. Os ministros negam qualquer relação com os pagamentos.
O caso de Eduardo Martins é dos mais curiosos. Chamado de “Dudu” dentro da Fecomércio, ele era o responsável por defender os interesses jurídicos da federação de Orlando Diniz em Brasília, mas nem sequer frequentava as reuniões da entidade. Dudu emitiu duas notas fiscais, no valor de 10 milhões de reais, para tratar de processos no STJ nos quais ele não tinha nem procuração para atuar. Detalhe: o caso já contava com o apoio de outros escritórios, que também tinham grandes contratos. Como o filho de um ministro consegue arrecadar tanto em um processo no qual nem estava habilitado e, além disso, já estava sob os cuidados de outras bancas? É algo que os procuradores se veem obrigados a perguntar.
O contrato da Fecomércio que mais chamou atenção dos investigadores, e que envolve as cifras mais impressionantes, foi firmado com os advogados que ganharam a ribalta como defensores de Lula. 
A banca de Cristiano Zanin Martins recebeu pelo menos 38 milhões de reais. Assim como no caso do sobrinho do ministro do STJ, há divergência entre o valor que aparece nas planilhas e a soma das notas fiscais emitidas, que chegam a 68 milhões de reais. Zanin ganhou os holofotes, e se credenciou para ser advogado de Lula, graças a uma ligação familiar: ele é genro de Roberto Teixeira, compadre do ex-presidente. Hoje, Zanin é o principal responsável pela defesa do ex-presidente. Como parte da tentativa de entender a razão dos pagamentos, a Lava Jato já desenhou situações que são, no mínimo, estranhas. Descobriu, como já foi dito, que Orlando Diniz contratou o escritório de Zanin porque queria uma solução “política” para um de seus pleitos, conforme depoimento de assessores da Fecomércio. De início, Diniz bancou a empreitada com dinheiro próprio. Para isso, levantou 1 milhão de reais em cash e levou o dinheiro até São Paulo com a ajuda de um doleiro. Como o valor foi insuficiente, ele passou a recorrer ao caixa da Fecomércio.
Embora provoque arrepios desde já em togados de Brasília, a definição sobre a delação deve ficar apenas para fevereiro, em razão do recesso do Judiciário. O fato de Orlando Diniz estar solto lhe dá alguma tranquilidade para negociar, o que contribui para a lentidão das negociações – quando do outro lado da mesa estão réus presos, os acordos costumam sair mais rapidamente. Mas isso não desanima responsáveis pelo caso. Na prisão do ex-presidente da Fecomércio, em fevereiro, o Ministério Público já começava a rascunhar o que existiria por trás das relações de Diniz com escritórios de advocacia. “Há suspeitas sérias de irregularidades em alguns desses contratos de serviços advocatícios, firmados por (e no) interesse de Orlando Diniz, que misturou ilicitamente recursos públicos com interesses privados”, escreveram os procuradores. Agora, com a delação, a investigação pode atingir um novo patamar. O ritmo do jogo com os procuradores pode até ser mais lento, mas a delação tem tudo para transformar o Judiciário na nova fronteira da Lava Jato. No interesse do próprio Judiciário e, consequentemente, do país.

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