As investigações que envolvem o primogênito do presidente Jair Bolsonaro pressionam o governo. Mas até onde elas podem causar danos irreparáveis a Jair Bolsonaro? Generais se mostram incomodados. E há, dentro da equipe do presidente, quem já pense no dia seguinte
25.01.19 Caio Junqueira
A imagem da mesa com quatro cadeiras vazias e placas indicando os lugares de “Araújo”, “Guedes”, “Moro” e “Bolsonaro” na sala de entrevistas do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, mostrava que havia algo fora do lugar. A sessão de perguntas e respostas que ocorreria ali no início da tarde de quarta-feira com o presidente Jair Bolsonaro e os ministros Ernesto Araújo, Paulo Guedes e Sergio Moro fora cancelada dez minutos antes. As versões para o cancelamento foram do cansaço à agenda extensa do presidente e de seus auxiliares. Mas não era bem isso. A comitiva presidencial brasileira não queria enfrentar a previsível bateria de perguntas sobre Flávio Bolsonaro.
O filho mais velho do presidente, deputado estadual pelo Rio de Janeiro e senador eleito em outubro com a maior votação da história, viu sua situação política se agravar nos últimos dias. Primeiro veio a revelação de um novo relatório do Conselho de Atividades Financeiras (Coaf) que o apontou como beneficiário de 48 depósitos de 2 mil reais em dois meses de 2017. Depois, a informação de que seu ex-assessor Fabrício Queiroz, suspeito de recolher caixinha de funcionários de seu gabinete na Assembleia fluminense, movimentou 7 milhões de reais entre 2014 e 2017. Por fim, na esteira de uma operação do Ministério Público contra milícias, descobriu-se que o filho do presidente empregou em seu gabinete a mãe e a mulher de um dos chefes do Escritório do Crime, a mais antiga e mais violenta organização paramilitar do Rio.
A escalada de notícias negativas coincidiu com a ida de Bolsonaro pai a Davos. Após o embarque do presidente para a Suíça, o país ficou sob o comando do vice, Hamilton Mourão. O general, de partida, deu o tom da estratégia do governo para o caso: “Problema do Flávio é dele, não do governo”. Nos corredores do Planalto, sempre que eram indagados sobre o inferno de Flávio, assessores também tentavam afastar o problema. A ideia era fazer todo o possível para desvincular o caso da imagem do presidente. Na quarta-feira, começou a ganhar força o discurso oficial de que Flávio deve ser punido caso fique comprovado seu envolvimento em ilucitudes. Mourão falou em “apurar e punir se for o caso”. Em Davos, falando à agência Bloomberg, o próprio Jair Bolsonaro embicou nessa direção: “Se Flávio errou, ele terá de pagar”. A estratégia mudaria horas depois, ante a percepção de que, com ela, o filho do presidente estava sendo atirado de vez no precipício. Bolsonaro, então, recuou. Passou a dizer que os ataques a Flávio são, na verdade, uma tentativa de minar seu governo.
O esforço não foi suficiente para debelar as chamas. Inclusive internamente. Os militares que integram o governo não verbalizam publicamente, mas nos bastidores criticam a condução do caso pela família presidencial. Avaliam que o próprio Jair Bolsonaro e o filho deveriam agir mais enfaticamente não apenas no sentido de explicar o que está sob o manto da suspeita, mas também de adotar providências concretas. Por exemplo, defender mais explicitamente que o motorista enrolado seja punido. Indaga-se, em especial, por que há certa hesitação da família ao tratar das evidências que pesam contra Queiroz.
Mais do que isso, em menos de um mês desde a posse, peças importantes do governo já naturalizam as consequências de um eventual recrudescimento da crise. Chega a ser inquietante a leitura que alguns desses aliados fazem à boca miúda, como Crusoé pôde presenciar mais de uma vez nos últimos dias. Eles dizem que, caso o próprio Bolsonaro seja atingido, os riscos para o país não são tão grandes porque, numa situação limite, o vice Mourão assumiria e manteria os planos que importam (em especial na economia e na área de segurança), ao conseguir segurar no time algum ministros vitais, como Moro e Paulo Guedes.
Não há sinais de que a crise será estancada tão cedo. Há vários flancos em aberto, com potencial de dano para o governo em diversas frentes. A seguir, alguns deles.
A ligação com as milícias
À diferença do pai, cuja base eleitoral sempre esteve nas Forças Armadas, Flávio Bolsonaro centrou seus quatro mandatos como deputado estadual na Assembleia Legislativa do Rio priorizando interesses de policiais militares e civis. Tanto que o homem forte de seu gabinete era o agora notório Fabrício Queiroz, um PM amigo da família há mais de vinte anos. Nesta semana, uma operação do Ministério Público do Rio batizada de “Os Intocáveis” acabou por trazer à tona as relações de Queiroz com uma das mais violentas milícias do Rio de Janeiro, o Escritório do Crime.
Um dos alvos da operação era o capitão Adriano Magalhães da Nóbrega, conhecido como Gordinho, líder da organização criminosa.
A mãe dele, Raimunda Veras Magalhães, e
a mulher, Danielle Mendonça da Costa da Nóbrega, foram empregadas no gabinete de Flávio Bolsonaro.
Nóbrega está foragido.
Mas um de seus principais parceiros, o major da polícia Ronald Paulo Alves Pereira, o Tartaruga, acusado de participar de uma chacina no Rio em 2003, foi preso, além de outros quatro integrantes do grupo. A ideia do MP do Rio é que eles façam delação premiada. Os investigadores tentarão, claro, saber até que ponto Flávio sabia ou se beneficiou da relação entre Queiroz e o Escritório do Crime. Ao longo de seus mandatos, o filho do presidente homenageou os dois milicianos na Assembleia. Ele diz que ambas as iniciativas, assim como a nomeação da mãe e da mulher de Adriano Nóbrega, partiram de Queiroz. A investigação sobre os segredos que restam da história seguirá como uma espada de Dâmocles.
As transações financeiras
A crise com Flávio Bolsonaro começou a partir de uma operação do Ministério Público Federal chamada “Furna da Onça”, deflagrada em novembro de 2018 para investigar suspeitas de corrupção e lavagem de dinheiro na Alerj. A partir dela, o Coaf produziu um relatório com movimentações financeiras atípicas de servidores da Casa, dentre as quais as de Fabrício Queiroz. O documento, que veio à público em dezembro, mostrou primeiro que ele movimentou 1,2 milhão de reais entre janeiro de 2016 e janeiro 2017 — 600 mil de entradas e 600 mil de saídas. Havia depósitos de vários funcionários do gabinete para ele, feitos sempre em datas próximas às do pagamento de salário pela Assembleia. As coincidências levaram à suspeita de que poderia haver um “esquema rachid” no gabinete de Flávio. Por essa razão, outra investigação foi aberta pelo MP do Rio. A Receita Federal também investigará as transações não só dos funcionários do gabinete de Flávio Bolsonaro, mas também dos de outros 26 deputados estaduais cujos assessores apareceram no relatório do Coaf. A ideia é cruzar as movimentações com as declarações de renda de todos. Para além desse primeiro documento tabulado pelo Coaf, o órgão (agora sob o comando de Moro no Ministério da Justiça) seguiu escarafunchando seus arquivos e constatou que as movimentações de Queiroz classificadas como suspeitas totalizavam um valor ainda maior: passaram para 7 milhões quando foi considerado um período maior de pesquisa, de 2014 a 2017. Só a mãe do miliciano procurado pela polícia depositou 92 mil reais na conta do motorista – os depósitos, nesse caso, foram feitos em espécie, em uma agência bancária localizada em frente a um restaurante do qual ela é sócia. O novo relatório do Coaf passou a abranger também transações realizadas pelo próprio Flávio Bolsonaro. Foi desse relatório que se extraiu a informação de que o filho do presidente recebeu, entre junho e julho de 2017, 48 depósitos de 2 mil reais, todos feitos em um caixa eletrônico da Alerj. Flávio Bolsonaro sustenta que o dinheiro é referente a um negócio imobiliário.
Os imóveis de Flávio
Entre 2014 e 2017, Flávio Bolsonaro registrou a compra de dois apartamentos no Rio por 4,2 milhões de reais. Antes, fez negócios que lhe renderam lucros de 260%. Comprou, por exemplo, dois imóveis em 2012 por 310 mil reais e os revendeu em 2013 e início de 2014 por 1,1 milhão. Ao explicar os sucessivos depósitos de 2 mil reais em sua conta, o filho do presidente disse que eram parte do pagamento um apartamento na Barra da Tijuca que vendera por 2,4 milhões de reais — o comprador do imóvel, o ex-atleta Fábio Guerra, confirmou que fez parte do pagamento em espécie. Flávio explicou que os depósitos dessa parcela do pagamento foram feitos de maneira fracionada, porque o caixa eletrônico só permite o limite de 2 mil reais por envelope. Faltou explicar por que um único depósito não foi feito diretamente na boca do caixa. Mais genericamente, ao explicar a origem do dinheiro que deu origem a negócios tão vultosos, ele apontou para suas atividades como empresário. O filho mais velho de Jair Bolsonaro é dono de uma franquia da loja de chocolates Kopenhagen em um shopping no Rio.
Os elos com Bolsonaro
Embora a estratégia do Palácio do Planalto seja afastar as suspeitas em torno de Flávio Bolsonaro da imagem do presidente da República, alguns pontos o aproximam da crise. O mais relevante deles é o fato de a primeira-dama, Michelle Bolsonaro, ter sido beneficiária de um cheque de 24 mil reais assinado por Fabrício Queiroz. O próprio Jair Bolsonaro disse que isso ocorreu porque Queiroz lhe devia 40 mil reais por causa de um empréstimo antigo. O valor, segundo o presidente, caiu na conta de Michelle, porque ele não tinha tempo de sair para ir ao banco. Esse não é o único liame de Bolsonaro com o caso. Queiroz é amigo do presidente há mais de vinte anos. Foi ele, inclusive, que colocou o motorista no gabinete do filho. Além disso, empregou a filha de Queiroz, Nathália, em seu gabinete na Câmara dos Deputados entre dezembro de 2016 e outubro de 2018 — nesse período, ela trabalhava como personal trainer no Rio. A depender do rumo das investigações, o próprio Bolsonaro poderá ser chamado a dar explicações.
O golpe no discurso
Independentemente dos desdobramentos que o caso terá, as suspeitas já causaram danos ao governo. Jair Bolsonaro se elegeu tendo como um dos pilares centrais de sua campanha um forte discurso em favor da ética, sempre pregando o combate ao velhos vícios da política – com alusão frequente aos escândalos revelados pela Operação Lava Jato, que levou o ex-presidente Lula à prisão. Não resta dúvida de que os crimes da era petista são, em números e grau, muito maiores que as suspeitas que até aqui recaem sobre Flávio Bolsonaro. Por ora, contra ele há indícios e suspeitas. Mas é impossível negar que o caso enfraquece o discurso do presidente e dá munição a seus adversários. Além disso, pode contaminar as ações prometidas pelo governo para varrer da administração pública as práticas nefastas que corroem a política e o estado brasileiro. O golpe no discurso é reforçado pela forma como Flávio e Queiroz reagiram ao caso. O ex-assessor faltou a dois depoimentos ao MP. Sobre a primeira falta, seus advogados informaram que “não tiveram tempo hábil para analisar os autos da investigação” e que Queiroz teve uma “inesperada crise de saúde”. Na segunda falta, foi dito que ele teve de ser internado para tratar um câncer. Depois, a filha e a mulher do motorista também faltaram, sob a justificativa de que o acompanhavam no hospital. Já Flávio tomou a decisão de recorrer ao Supremo Tribunal Federal para suspender as investigações sobre o caso, que correm no MP do Rio. Para o pai, que se elegeu defendendo investigações amplas e irrestritas sobre políticos de todas as cores, doa a quem doer, é um prejuízo e tanto. E o governo não completou nem um mês ainda.
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