quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O que pensa Jordan Peterson, o intelectual testosterona

O que pensa Jordan Peterson, o intelectual testosterona

O psicólogo Jordan Peterson desponta para o estrelato ao atacar o feminismo e direitos dos transexuais com um discurso que acalenta os machos

RUAN DE SOUSA GABRIEL
30/03/2018 - 08h01 - Atualizado 30/03/2018 10h17
Peterson profere uma palestra na Universidade de Toronto. O canadense é sucesso nas redes sociais e autor de um livro de autoajuda para jovens machos perdidos em um mundo mais feminino (Foto: Rene Johnston/Getty Images)
O  psicólogo canadense Jordan Peterson gosta de repetir um bordão que todo menino já ouviu do próprio pai, em diferentes versões: “Sort yourself out, bucko!” (“Toma jeito, rapaz!”, em português paternal). Já há no mercado vários modelos de camiseta com a frase e até com o rosto de seu autor — um sinal inequívoco da cultura pop de que a mensagem caiu no gosto de alguns. Peterson soma mais de 226 mil curtidas em sua página no Facebook e 570 mil seguidores no Twitter. Seu canal no YouTube tem quase 1 milhão de inscritos. A audiência é 80% masculina, como ele gosta de repetir.
Com suas olheiras pesadas, cara de sogro turrão e um sotaque que decerto seria alvo de deboche de personagens de sitcoms americanos, esse obscuro intelectual conservador invadiu o espaço público (e virtual) do liberalíssimo e calmo Canadá de Justin Trudeau — o primeiro-ministro bonito e sensível, que passeia com a família em paradas do orgulho gay e governa com um ministério metade feminino e o charme de um imberbe Fidel Castro em ternos finos e meias coloridas. Psicólogo clínico e professor da Universidade de Toronto, Peterson é quase um anti-Trudeau. Se o primeiro-ministro representa um novo tipo de masculinidade (mais afável, feminista e amiga das minorias), Peterson defende os valores tradicionais e a testosterona e acusa de totalitarismo os militantes lgbt (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais).
Peterson afirma que é a biologia, e não os discursos e as construções sociais, a responsável pelas hierarquias sociais e pela desigualdade entre os gêneros. Homens ganham mais que mulheres, argumenta Peterson, porque são mais agressivos, menos dispostos à cooperação e moldados pela natureza para aguentar jornadas de trabalho exaustivas. A desigualdade salarial não é culpa de ninguém, mas uma consequência incontornável da biologia de homens e mulheres.
Peterson deixou o anonimato em setembro de 2016, quando se opôs publicamente à Lei C-16, uma emenda aprovada pelo governo Trudeau ao Código Criminal e ao Ato de Direitos Humanos canadenses, que tornou crime a discriminação contra transexuais, travestis e pessoas não binárias — aquelas que não se identificam como homem ou como mulher. A Comissão de Direitos Humanos de Ontário concluiu que, num ambiente escolar ou profissional, se recusar a chamar uma pessoa transexual por seu nome social ou pelos pronomes pessoais com os quais ela se identifica é considerado discriminação — e portanto crime, segundo a nova legislação. Numa situação hipotética, um aluno ou um trabalhador transexual pode processar o professor ou o patrão que insistir em chamá-lo por seu nome de batismo ou tratá-lo no masculino quando ele se identifica como mulher ou vice-versa.
Ele se insurgiu contra a aplicação da lei, acusando-a de cercear a liberdade de expressão ao querer regular a linguagem. O principal alvo da fúria de Peterson foi o uso “politicamente correto” de pronomes neutros e outros neologismos. Muitos transexuais e pessoas não binárias rejeitam os pronomes pessoais tradicionais da língua inglesa, como “he” (ele) e “she” (ela), em favor do pronome neutro “they” (eles/elas) ou de neologismos, como “ze” ou “zhe” — o equivalente a “el@” ou “elx”, em português desconstruído. “Eu não vou ser porta-voz de uma linguagem que detesto”, afirmou Peterson, cruzando os braços de forma enfática num debate.
Ele fez da internet sua trincheira contra a “ideologia de gênero”. Em seu canal no YouTube, postou uma série de vídeos intitulada Professor contra o politicamente correto,na qual afirma que não vai adotar gêneros neutros e explica por que considera a luta contra a correção na linguagem uma batalha em favor da liberdade de expressão. O primeiro vídeo da série teve mais de 300 mil visualizações — um número impressionante, uma vez que são 57 minutos de apresentação de slides, sem nenhuma imagem e uma narração às vezes exaltada, mas quase sempre monocórdica. Acadêmicos e militantes de direitos humanos vieram a público com duras críticas a Peterson. Alguns o acusaram de repetir as técnicas de disseminação de informações falsas aprimoradas pela extrema-direita americana que elegeu Donald Trump. Estudantes organizaram protestos no campus. A direção da Universidade de Toronto enviou uma carta a Peterson alertando-o de que sua recusa em usar pronomes neutros revelava “intenções discriminatórias” e levantava dúvidas quanto a sua capacidade de exercer funções docentes.
Jordan Peterson tem 55 anos, um casamento de quase três décadas, dois filhos e um neto. É esguio, com cabelo grisalho comportado. Mantém a postura plácida e o semblante sério de um pai das antigas. Gesticula pouco e fala com firmeza. “Eu sou muito, muito, muito cuidadoso com minhas palavras”, afirmou à jornalista Cathy Newman numa controversa entrevista à tv britânica, que foi vista mais de 8 milhões de vezes no YouTube. A residência dos Petersons é decorada com retratos de Lênin e de outros líderes bolcheviques pintados por artistas oficiais do regime soviético. A inusitada decoração inspirada no realismo socialista costuma assustar os visitantes, mas, é claro, não indica qualquer simpatia do dono da casa pelo comunismo. A arte soviética está lá, disse ele, para lembrar o poder maléfico das ideologias.
Há pouco mais de dois anos, Peterson era apenas um professor que gozava de alguma popularidade no meio acadêmico, um psicólogo clínico que dava lições de aperfeiçoamento pessoal no YouTube. Graças a seu discurso conservador — e ao fervor dos machos ressentidos das redes sociais —, ele se tornou um dos intelectuais mais influentes do mundo anglófono. Seu novo livro, 12 rules for life: an antidote to chaos (12 regras para a vida: um antídoto para o caos), frequentou  as listas de mais vendidos do Canadá, dos Estados Unidos, do Reino Unido, da Austrália, da França e da Alemanha. A edição brasileira, preparada pela Alta Books, chegará às livrarias em maio. A controversa ensaísta americana Camille Paglia afirmou que Peterson é “o pensador canadense mais influente desde Marshall McLuhan (autor de conceitos como “o meio é a mensagem” e “aldeia global”)”. “Peterson é uma das mentes mais brilhantes que já conheci. Ele tem a originalidade e a intensidade de um poeta, de um artista”, disse Paglia a época. “A síntese interdisciplinar e corajosa que Peterson faz da psicologia, da antropologia, da ciência, da política e da religião comparada está formando um modelo para uma universidade genuinamente humanista no futuro.”
Cassandra Williams e Wesley Williams, ativistas transexuais, participam de protestos contra Peterson em universidade. Grupos se revoltam contra posturas do psicólogo, que se recusa a tratar pessoas trans por pronomes neutros no lugar de “ele” ou “ela” (Foto: Vince Talotta/Getty Images)
Em 1999, Peterson publicou Maps of meaning: the architecture of belief (Mapas do significado: a arquitetura da crença), um livro de mais de 600 páginas que recebeu pouquíssima atenção da crítica acadêmica. Por meio de gráficos, referências aos arquétipos do psiquiatra suíço Carl Jung, anedotas autobiográficas e conceitos da psicologia evolutiva, Maps of meaning se propõe a explicar como a mente humana trabalha e por que a cultura é resultado da evolução da espécie — e não uma construção social. Nesse livro, Peterson conta como se converteu num apóstolo da testosterona, um combatente furioso das teorias pós-modernas responsáveis pela desorientação dos jovens machos, amedrontados por feministas fálicas e coléricas.
Tudo começou com uma crise de fé adolescente. Peterson foi criado numa igreja protestante conservadora e, aos 12 anos, passou a frequentar as aulas de profissão de fé. Um dia, perguntou ao pastor como reconciliar a narrativa bíblica da criação divina com as teorias científicas sobre a origem do Universo. O pastor deu uma resposta insatisfatória, despreocupada com qualquer tipo de aproximação entre a fé e a ciência. O jovem Peterson desconfiou que nem o pastor acreditava nas histórias bíblicas. “A religião era para os ignorantes, os fracos e os supersticiosos. Eu parei de ir à igreja e me juntei ao mundo moderno”, escreveu Peterson no livro.
Ele abandonou a religião, mas continuou atormentado pela pergunta que desnorteia teólogos e místicos há milênios: qual a origem do mal? Peterson pertence a uma geração que cresceu sob a ameaça da Guerra Fria e aprendeu a identificar a face do mal no militarismo americano ou no Exército Vermelho soviético. Primeiro, ele identificou a origem do mal na desigualdade social e econômica e se engajou nas lutas socialistas. Mas se desiludiu com a práxis de seus companheiros: “Eles pareciam viver para reclamar: não tinham profissão, frequentemente; não tinham família nem educação formal — nada além da ideologia. Eram rabugentos, irritadiços e mesquinhos”, escreveu. Peterson passou a identificar o mal nas “ideologias”, especialmente nas de esquerda. Entregou sua alma à ciência, à psicologia comportamental e às teorias de Carl Jung. A filiação à psicologia mística de Jung reconciliou Peterson com as narrativas míticas e religiosas, às quais sempre recorre. Seu percurso intelectual lembra um de seus autores favoritos, Fiódor Dostoiévski. Na juventude, o escritor flertou com as ideias socialistas, mas encontrou Jesus numa prisão siberiana e se converteu num defensor da religião, do nacionalismo e da monarquia, e passou a culpar as filosofias materialistas europeias pelo dilaceramento da alma russa.
Peterson foi influenciado por outros autores, como Alexander Soljenítsin, o russo que denunciou a tirania soviética; Friedrich Nietzsche, o filósofo alemão que zombava da razão iluminista; e Søren Kierkegaard, existencialista cristão dinamarquês. São autores que apelaram ao sagrado ou aos instintos para combater a racionalidade moderna, que sufocariam os valores tradicionais ou tentariam domesticar o homem. Peterson criou um panteão de autores que odeia e considera culpados pela decadência da cultura ocidental e pela epidemia de esquerdismo nas universidades. São todos franceses que transitaram entre a psicanálise e a filosofia: Jacques Lacan, Michel Foucault e Jacques Derrida. Peterson culpa a “doutrinação esquerdista” nas universidades, o “politicamente correto”, o “neomarxismo” e o “pós-modernismo” por todos os males do Ocidente, como a emasculação de uma geração de machos viris por feministas e autoritárias.
Peterson faz uma interpretação maliciosa dos teóricos inimigos para justificar seus ataques. Segundo ele, o pensamento pós-moderno destrói tudo que é sólido, relativiza tudo. Contra esse relativismo ideológico pós-moderno, recorre à biologia para afirmar que homens e mulheres são como são porque a natureza assim os fez — e não por causa do meio onde vivem. A ironia é que o discurso de Peterson é, por si mesmo, ideológico. A filosofia ensina que ideológico é o discurso que trata as coisas como “naturais”, e não como construções sociais e produtos de contextos históricos.
Vladimir Lênin faz discurso na Praça Vermelha, em Moscou, em 1918. Ex-socialista, Peterson mantém retratos de líderes soviéticos em casa para, segundo ele, nunca esquecer o poder maléfico das ideologias (Foto: Hulton-Deutsch Collection/Corbis/Getty Images)
O ódio de Peterson aos pós-modernistas e neomarxistas é recíproco. “Peterson é um narcisista astuto e megalomaníaco. A oposição dele aos direitos transexuais foi apresentada como uma questão de liberdade de expressão, o que permitiu esconder sua transfobia latente sob uma suposta cruzada contra a censura”, afirmou Cara Tierney, artista, ativista transexual e professora na Universidade de Ottawa. No ano passado, Tierney protestou contra uma aparição de Peterson na National Gallery, em Ottawa. Quando aceitou conceder entrevista a época, Tierney reforçou que seu pronome pessoal é “they” e pediu que a reportagem evitasse qualquer linguagem masculina ou feminina, como “ele” ou “ela”. “Os pós-modernistas atacam Peterson porque ele ousa falar de ‘natureza’”, afirmou Camille Paglia. “Aliás, os brasileiros devem respeitar Peterson por isso, uma vez que a natureza é um dos princípios supremos da cultura brasileira. A recusa em reconhecer o poder da natureza se tornou uma doença mental entre os intelectuais atualmente. A biologia existe e não pode ser apagada pelos Zelotes do politicamente correto.” Na úlltima quarta-feira (28), Peterson divulgou as respostas de Paglia a ÉPOCA em sua conta no Twitter. Desde o início de março,  a reportagem insistiu em uma entrevista com Peterson junto a seus agentes canadenses, mas os pedidos foram negados devido à atribulada agenda do professor. 
“Peterson é o verniz de autoridade científica à reação antifeminista, que geralmente não associamos a um acadêmico polido e erudito como ele, mas a brutamontes desajeitados, reivindicando um lugar que teria sido tomado por estrangeiros e efeminados”, afirmou o psicanalista Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (ip-usp). “Ao procurar fundamentos biológicos e evolutivos para as diferenças de gênero, ele consegue despolitizar a questão, apresentando sua própria ideologia como ‘não ideológica’.” Além de oferecer justificativas científicas para valores tradicionais e senso comum, boa parte do apelo de Peterson se deve ao modo como ele se apresenta ao público. Elegante, sério, inteligente, com uma respeitável cabeleira grisalha e conselhos na ponta da língua, Peterson parece encarnar um psicólogo experiente pronto para ajudar os ansiosos, um austero pastor de província que orienta a mocidade desajustada ou um pai rígido e amoroso. “O doutor Peterson personifica o tipo de pai que hoje em dia, infelizmente, está em falta”, afirmou a época Oren Amitay, psicólogo e professor da Universidade Ryerson, em Toronto. Amitay foi um dos primeiros acadêmicos canadenses a vir a público em defesa de Peterson. “Pesquisas mostram que é particularmente importante para os homens ter uma figura paterna positiva, alguém que ensine o menino a ser um bom homem, a se defender, a não ser babaca, a tratar bem as mulheres. Sem essa figura masculina forte, a maioria deles está perdida. O doutor Peterson é essa figura paterna: durão, mas inteligente e compassivo, não mente e não apoia ilusões ou comportamentos destrutivos.”
O público de Peterson são jovens que se sentem perdidos num mundo cada vez mais feminino, que não entendem os novos códigos sociais e clamam por orientação e uma voz grave que os valorize. Peterson diz que muitos desses jovens escrevem para ele contando das dificuldades de se aproximar das mulheres — um problema tão antigo quanto fazer xixi em pé, mas que ganha conotações quase políticas em seu discurso. Seu novo livro,12 rules for life: an antidote to chaos, é direcionado justamente a esses jovens machos e ensina a botar ordem no caos — na simbologia petersoniana, a ordem é masculina, e o caos é feminino.
12 rules for life é um clássico manual de autoajuda (com pitadas apressadas de filosofia) cujos capítulos têm títulos como “Mantenha a postura ereta e os ombros para trás” e “Acaricie um gato quando encontrar um na rua”. “A emergência de substitutos para o cargo vago de pai é uma patologia política muito conhecida”, explicou Dunker. “Um psicólogo não deveria ocupar esse lugar, mas trabalhar para que as pessoas possam ser felizes e conduzir suas vidas sem precisar disso. Modelar comportamentos como um coach para aumentar resultados confunde psicoterapia com educação. Em geral, o efeito colateral disso é dependência, submissão e perda de autonomia.” Afinal, todo menino um dia aprende que não pode contar com o pai para protegê-lo de todas as ameaças — especialmente quando são pura histeria.

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