O salto de Bolsonaro
Na reta final da campanha mais radicalizada da história, o antipetismo se impõe e amplia as chances de vitória do capitão da reserva do Exército. Conheça os resultados da mais nova pesquisa encomendada por Crusoé sobre a corrida presidencial e entenda o que os dois candidatos que lideram a disputa propõem para o futuro do Brasil
05.10.18
Logo no início de seu sexto mandato como deputado federal, um dos primeiros atos de Jair Bolsonaro foi apresentar um requerimento convocando o então ministro da Educação, Fernando Haddad, para prestar esclarecimentos no Congresso Nacional sobre um tal kit gay, como começava a ser chamado àquela altura um papelório que o ministério pretendia distribuir nas escolas públicas do país para combater a homofobia. Era 3 de março de 2011. Duas semanas depois, o capitão da reserva sofreria uma derrota fragorosa. Seu pedido foi rejeitado por ampla maioria. Quem anunciou o resultado, curiosamente, foi a atual candidata a vice de Haddad, Manuela D’Ávila, que presidia a sessão naquele dia. Bolsonaro protestou, irritado: “Algum hétero para me apoiar?”. Ninguém respondeu.
O embate teve sequência nos meses seguintes e foi ampliado ao longo da campanha municipal de 2012. Bolsonaro colou na porta de seu gabinete um cartaz apontando Haddad, que disputava o comando da capital paulista, como “o candidato do kit gay”. Quando o petista foi ao segundo turno, o deputado discursou no plenário: “São Paulo agora está numa eleição, e o Haddad está mentindo descaradamente”. “Acorda, povo paulistano. Manda o Haddad aqui para o Planalto de volta”, pediu. Haddad ganhou a prefeitura, e Bolsonaro prosseguiu em sua toada. “Será que o Haddad, como prefeito de São Paulo, vai implementar a cadeira de homossexualismo nas escolas de primeiro grau?”, indagou o ex-capitão, que era ignorado solenemente pelo petista.
Passados seis anos, a realidade é outra. A menos de 48 horas do início da votação nestas que já são eleições mais conturbadas desde a redemocratização do país, ambos se consagram, por motivos diferentes, como os dois grandes fenômenos eleitorais desta campanha. E, nesse duelo, ao menos por ora, Bolsonaro vem levando vantagem. Esta edição traz o resultado da mais nova pesquisa encomendada por Crusoé em parceria com a Empiricus, sócia da revista, sobre a corrida presidencial. O levantamento, feito pelo Instituto Paraná nos últimos três dias, aponta um crescimento do candidato do PSL em relação à última sondagem, realizada entre os dias 23 e 25 de setembro.
Bolsonaro passou de 31,2% para 34,9%. Fernando Haddad, do PT, oscilou dentro da margem de erro, de dois pontos percentuais para cima ou para baixo: foi de 20,2% para 21,8%. Foram entrevistados 2.080 eleitores em 172 municípios de todos os estados do país. O resultado revela também variação negativa, dentro da margem de erro, dos candidatos do chamado segundo pelotão. Ciro Gomes, do PDT, tinha 10,1% e passou para 9,4%. Geraldo Alckmin, do PSDB, foi de 7,6% para 7,4%. Marina Silva, da Rede, tinha 4,3% e apareceu com 3,5%. No grupo seguinte, as variações também foram pequenas. João Amoêdo, do Novo, passou de 3,8% para 3,1%. Alvaro Dias, do Podemos, de 1,9% para 1,4%, e Henrique Meirellles, do MDB, de 1,3% para 1,7%. Cabo Daciolo, do Patriota, foi de 0,3% para 1% e Guilherme Boulos, do PSOL, de 0,4% para 0,6%. Vera Lúcia, do PSTU, variou de 0,3% para 0,5%, e João Goulart Filho, do PPL, e Eymael, do DC, passaram de 0,1% para 0%.
Os números apontam que, a despeito da torcida no núcleo da campanha bolsonarista, ainda é improvável que Bolsonaro vença no primeiro turno: o militar tem 40,9% dos votos válidos, contra 25,6% de Haddad. Para vencer, ele precisaria ultrapassar 50%. Os dados, contudo, mostram que a proeza não é impossível. Isso porque boa parte dos eleitores de Ciro (29,7%), Alckmin (34%), Marina (44,4%) e Amoêdo (39,1%) admite mudar de voto. Além disso, 4,6% disseram não saber em quem votar. Parte significativa da força de Bolsonaro está no Sudeste, a região mais populosa do país e, portanto, onde se concentra o maior número de eleitores. Ali, ele tem 35,7% das intenções de voto, ante 17,1% de Haddad. O petista, porém, lidera no Nordeste, onde tem 35,9%, contra 22,9% do candidato do PSL. Bolsonaro também supera Haddad entre eleitores com ensino médio (40% a 19,9%) e superior (43,5% a 13,3%), mas perde dentre aqueles com apenas o ensino fundamental (tem 21,1% e Haddad tem 30,6%).
Nas simulações de segundo turno, segundo o Instituto Paraná, Bolsonaro derrota Haddad por 47,1% a 38,1%. A pesquisa questionou para onde migram os eleitores que não optaram por nenhum deles no primeiro turno. Vão para Bolsonaro 20,5% dos eleitores de Ciro Gomes, 43,8% de Alckmin e 23,6% de Marina. Já para Haddad, 61% dos eleitores de Ciro, 31,4% de Alckmin e 47,2% de Marina. Os assinantes de Crusoé podem conferir o resultado completo da pesquisa aqui.
A ascensão de Bolsonaro mostra que, nesta reta final da disputa, ele conseguiu se consolidar como alternativa ao PT no poder. O candidato do PSL rasgou todas as cartilhas eleitorais. Com parcos oito segundos de tempo de televisão na propaganda eleitoral gratuita, sem recursos financeiros e sem um partido estruturado, ele chega à disputa como favorito. Seu grande trunfo foi ter personificado a figura do político antipetista e anti-sistema — e, como tal, vem aproveitando ao máximo as redes sociais. Bolsonaro soube surfar como ninguém na onda da Operação Lava Jato, que pôs o poder de joelhos com suas sucessivas descobertas de esquemas bilionários de corrupção montados na máquina pública e em empresas estatais. Embora seja um deputado em sétimo mandato, com longa trajetória nos corredores do poder, ele conseguiu repetir máximas usadas por seu ídolo Donald Trump e se pôs como opção à velha política, entoando mantras como “Menos Brasília, mais Brasil” (Trump pregava o “Menos Washington, mais América”).
Ele conseguiu tomar dos tucanos a primazia do antipetismo. Se em 2014 era Aécio Neves o dono do discurso, a derrocada do senador mineiro, colhido impiedosamente pela Lava Jato, abriu para o capitão da reserva mais um flanco a ser explorado. O terreno já estava, de certa forma, preparado para isso. Ainda que não fosse a principal referência nas críticas ao partido de Lula, Bolsonaro passou anos confrontando o PT. Os resultados mais visíveis dessa estratégia vieram justamente depois da guerra do kit-gay, com Haddad no ministério e Dilma Rousseff no Planalto. De lá para cá, o antipetismo só fez crescer. E, com ele, veio o crescimento da sua popularidade, especialmente entre os eleitores mais alinhados com ideias de direita. Seu histórico de declarações polêmicas, denunciadas como autoritárias, racistas e homofóbicas, era relevado. Prevaleceu o discurso contra o establishment político arrasado pela Lava Jato, da qual ele conseguiu, ao menos até agora, se manter imune.
“Bolsonaro é um fenômeno porque representa a opinião majoritária da sociedade de que a classe política toda é corrupta. Ele encarna essa pregação contra o sistema e o político tradicional, e junto com isso o sentimento anti-PT”, define David Fleischer, professor de Ciências Políticas da Universidade de Brasília (UnB). Um dos principais aliados do presidenciável do PSL segue a mesma linha. “Ele não é mais propriedade dele mesmo. Ele encarna um movimento”, diz o deputado gaúcho Onyx Lorenzoni (DEM), cotado para assumir um ministério em um eventual governo Bolsonaro.
Na outra ponta, há outro fenômeno: o próprio Haddad, uma criação do ex-presidente Lula. Da prisão em Curitiba, onde cumpre pena por corrupção e lavagem de dinheiro, o chefe petista conseguiu influenciar o processo eleitoral ao manter sua candidatura até o limite, substituí-la por Haddad e, na sequência, torná-lo competitivo. O sucesso é atribuído basicamente a dois fatores. O primeiro é a nostalgia que parte do eleitorado nutre do crescimento econômico e dos ganhos sociais experimentados na era Lula. “Lula teve um governo muito bem avaliado pela população e manteve seu prestígio em cima disso”, diz o cientista político Carlos Ranulfo, professor da UFMG. O outro fator é o fracasso de popularidade do governo Michel Temer, obrigado a arcar com as consequência funestas da administração de Dilma Rousseff, o primeiro poste lulista.
Os números da Pesquisa
Nos últimos dias, como mostra a pesquisa, Bolsonaro avançou sobre o eleitorado de baixa renda, tradicionalmente alinhado com o PT. A curva é ascendente, o que alimenta no entorno do candidato do PSL a expectativa de uma vitória no primeiro turno. A campanha petista, por sua vez, acordou. E rachou. De um lado, há um grupo que defende que Haddad mantenha sua imagem colada à de Lula. Do outro, há quem advogue que ele assuma uma característica mais própria e menos radicalizada. Essa segunda linha vem sendo rechaçada pelo alto comando do partido. Um dos argumentos dos que não concordam com ela é o de que já se cristalizou nesta eleição a ideia de que se trata de uma disputa plebiscitária entre o petismo e o antipetismo – com isso, já não faz mais diferença estar ou não vinculado a Lula.
A dualidade está bem retratada nos planos de governo de ambos apresentados ao Tribunal Superior Eleitoral pelos dois candidatos que rivalizam nesta reta final. O de Bolsonaro, batizado de “O Caminho da Prosperidade”, ocupa 81 páginas, mas bem poderia ser reduzido a dez se fossem consideradas apenas as propostas efetivas ali contidas. O programa petista, intitulado “O Brasil feliz de novo”, está distribuído em 62 páginas – que também não passariam de dez se bem resumidas.
Há diferenças marcantes na economia. O programa de Bolsonaro segue o ideário liberal de Paulo Guedes, aquele que o candidato chama de “Posto Ipiranga” sempre que é indagado sobre o tema. Enxugamento do Estado, privatização das estatais, redução da carga tributária, descentralização de recursos da União, estabelecimento de metas para funcionários públicos, independência do Banco Central e manutenção do tripé econômico brasileiro (câmbio flexível, meta de inflação e meta fiscal). No papel, é um programa que agrada o mercado, o que explica a euforia refletida nos principais índices desta semana assim que o crescimento de Bolsonaro começou a aparecer nas pesquisas. A Bolsa subiu e o dólar caiu.
No plano petista, o trecho econômico vai justamente na linha oposta. Primeiro, parte da avaliação de que o impeachment de Dilma Rousseff pôs fim a um ciclo de expansão econômica. Uma mentira, já que, quando Dilma caiu, a economia brasileira já estava em crise havia alguns anos. Em 2014, por exemplo, o PIB cresceu 0,1%, o pior resultado desde 2009. Em 2015 recuou 3,8% e em 2016, 3,6%, confirmando a pior crise econômica da história do país. Depois, o programa destrincha algumas medidas para que o país saia do buraco. As principais: revogação da emenda constitucional que impôs limite de gastos nas contas públicas, revogação da reforma trabalhista, suspensão de privatizações, redução de juros e ampliação de gastos sociais. Medidas que, com a economia em frangalhos como está, são arriscadas.
“Os programas são antagônicos. O do Haddad entende o Estado como assistencialista e indutor do desenvolvimento. O do Bolsonaro defende um estado menor cuidando apenas de saúde, educação e segurança. O resto passa à iniciativa privada”, sintetiza José Koburi, professor de economia do Ibmec. O programa de Haddad, diz Koburi, traz ideias “ultrapassadas e que já se provaram erradas” – ele cita a promessa de revogação da emenda constitucional do teto dos gastos e da reforma trabalhista como exemplos do que chama de equívocos. Por outro lado, há quem discorde da análise e avalie que é o programa de Bolsonaro que pode ser prejudicial ao país. “Seria uma tragédia porque o país se tornaria mais dependente de países centrais a um custo social muito alto”, diz Roberto Piscitelli, professor de economia da Universidade de Brasília. Apesar da divergência, os dois professores concordam que muito do que consta em ambos os programas simplesmente não poderá ser aplicado. “Muitas plataformas precisam passar pelo Congresso e são inviáveis politicamente”, afirma Koburi. “Um processo todo de reequilíbrio de contas demora no mínimo quatro anos. Não dá para fazer no curto prazo como se promete”, emenda Piscitelli.
A contraposição entre os dois programas se estende a outras áreas, como na comunicação. O programa de Bolsonaro diz claramente ser “contra qualquer regulação ou controle social da mídia”. Por sua vez, o de Haddad discorre bastante sobre o assunto. Defende “restrições à propriedade cruzada (controle de diferentes mídias) e à integração vertical (controle de diferentes atividades da mesma cadeia de valor)” e a existência de um “órgão regulador com composição plural e supervisão da sociedade para evitar sua captura por qual- quer tipo de interesse particular”. Ou seja: os petistas anunciam que querem controlar a imprensa, algo que já tentaram no passado recente por caminhos tortos.
No combate à corrupção, tema que ganhou relevância nos últimos tempos no país, o programa de Bolsonaro é vago e breve. De efetivo mesmo, defende a aprovação das chamadas “Dez Medidas Contra a Corrupção”, propostas pelo Ministério Público Federal em 2015 e abortadas pelo Congresso. Já Haddad propõe alterações legislativas, mas justamente no sentido oposto ao que pregam os investigadores, seja da Polícia Federal, seja do Ministério Público. O programa petista quer mudar o modelo de delações premiadas em vigor e sustenta que “a pauta do combate à corrupção não pode servir à criminalização da política: ela não legitima a adoção de julgamentos de exceção, o atropelamento dos direitos e garantias fundamentais ou a imposição de uma agenda programática que visa privatizar os serviços e o patrimônio público”. As diferenças se estendem às propostas para a área social. A premissa do programa de Bolsonaro é a de que o choque de liberalismo trará a retomada econômica e, em consequência, renda, emprego, prosperidade e inclusão social. Haddad repete programas dos governos no PT, como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida.
Para além dos programas, em declarações recentes de integrantes das campanhas de Bolsonaro e de Haddad há outras propostas que, examinadas à luz da razão, parecem devaneio – ou, quando não o são, se mostram politicamente difíceis. O próprio Paulo Guedes, guru econômico de Bolsonaro, precisou submergir após sugerir a volta de algo na linha da CPMF, tributo sobre movimentações financeiras, em substituição a outros impostos federais, e uma alíquota única para o Imposto de Renda. Nenhuma das duas ideias constavam do programa. Também foi Paulo Guedes que anunciou publicamente que, se Bolsonaro for eleito, o governo conseguirá arrecadar 1 trilhão de reais vendendo seus ativos – algo que também parece longe da realidade, uma vez que, para se chegar a esse valor, seria preciso que surgissem interessados em comprar, pelo valor ofertado, tudo o que se pretende vender.
Há outras ideias fora do papel que parecem também fora do lugar para o Brasil atual. O próprio Bolsonaro já defendeu a ampliação de 11 para 21 o número ministros no Supremo Tribunal Federal. Depois voltou atrás. Seu vice, general Hamilton Mourão, disse simpatizar com uma nova Constituição sem uma Assembleia Constituinte eleita pela população e criticou o décimo-terceiro, uma garantia trabalhista constitucional. No lado petista, o ex-ministro José Dirceu, condenado no mensalão e na Lava Jato, defendeu recentemente uma lipoaspiração dos poderes do Supremo Tribunal Federal. Também afirmou que é preciso retirar o poder de investigação do Ministério Público e declarou, sem maiores detalhes, que é “uma questão de tempo” para o PT “tomar o poder”. Nos bastidores, petistas dizem que o caminho para essas mudanças seria uma Constituinte, que vem sendo defendida por Haddad e está no plano de governo do petista – embora lá não haja detalhes.
Na eleição mais acirrada e turbulenta das últimas três décadas, o que há de concreto é que o chamado centro político brasileiro perdeu. O eleitor fugiu do caminho do meio em busca de opções tão díspares que, qualquer que seja o vitorioso, haverá uma enormidade de pessoas contrárias a ele e a suas ideias.
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