quinta-feira, 13 de abril de 2017

Diogo, O Terrível

Diogo, O Terrível


É um dos meus desportos favoritos: chegar ao Brasil e falar, em tom blasé, de Diogo Mainardi. "Você leu a coluna dele na Veja? Muito boa", digo eu. O meu interlocutor cai num silêncio sepulcral. As veias do pescoço vão inchando como em certos filmes de vampirismo. O sangue concentra-se todo na cabeça. Os olhos, vermelhos e irados, saem das órbitas. A boca espuma. Os queixos tremem. Alguns levam a mão ao braço esquerdo e pedem uma ambulância. Deus do céu, eu já perdi a conta dos infartos, ou das ameaças de infarto, que a minha perversidade provocou em São Paulo e no Rio. Diogo Mainardi não é um colunista. É uma assombração.
Curioso. Irônico. Paradoxal. As mesmas pessoas que desmaiam na minha frente com o nome de Mainardi não desmaiam com uma elite política corrupta que usa dinheiro público tradução: dinheiro dos brasileiros para suas negociatas. O mal não está em quem rouba. Está naqueles que denunciam o roubo. Em condições normais, um país estaria grato aos jornalistas que vigiam e criticam o poder. Mas o Brasil não é um país normal. Aliás, Portugal também não é e pressinto aqui uma cultura histórica comum: quando um colunista abre a boca para criticar o governo, ele não critica o governo. Ele é um demente, um invejoso, um fracassado. E, em caso de discórdia, os leitores, para não falar dos colegas de ofício, não estão dispostos a contra-argumentar. Mas a censurar. O ideal não é discutir. É silenciar. Na impossibilidade de fuzilar. Curiosas mentalidades.
Às vezes pergunto se vale a pena continuar. Como Diogo Mainardi pergunta em seu último livro, "Lula é Minha Anta" (Record, 240 págs.), relato da sua odisséia anti-lulista. No livro, conta Mainardi que dedicou cerca de 5 mil horas a Lula (antes do mensalão começar). Cinco mil. Uma vida. Uma barbaridade. E quando o colunista acredita que finalmente se libertou do presidente, o mensalão estoura e Lula, como nos filmes de Coppola, volta a arrastá-lo para a velha dança. Mais 5 mil horas. Mais dez. Mais quinze.
Eu não me perdoaria. Sério. Nas milhares de horas que Mainardi perdeu com Lula, teria sido possível ler todo o Balzac, todo o Flaubert. Mas também teria sido possível viajar. Dormir. Namorar. Vadiar. Milhares horas com Lula e o PT não inspiram indignação. Inspiram compaixão.
Compaixão e irrisão. Várias vezes disse a Diogo Mainardi que ele deveria regressar à ficção. Basta ler os quatro livros publicados até ao momento ("Malthus", "Arquipélago", "Polígono das Secas", "Contra o Brasil") para entender o lugar singular do autor na prosa brasileira contemporânea. Ao resgatar a tradição satírica européia para a língua lusa, Mainardi faz o que Millôr Fernandes e Ivan Lessa fizeram antes dele: limpa o pó à gramática e confere uma vitalidade ao texto que é mortal para denunciar o ridículo da condição humana. Mas a resposta dele é sempre a mesma: "E quem paga as minhas contas?" Na conversa que tivemos, e que reproduzo embaixo, a pergunta é repetida. A resposta também.
Erro meu. "Lula é Minha Anta" não é apenas o resumo da batalha hilária de Diogo Mainardi para derrubar Lula. É também o retrato político de um país que ganha contornos grotescos, muito acima de qualquer ficção: na política, no jornalismo, no mundo empresarial; e nas relações promíscuas e até mafiosas que se instalam entre esses vários mundos. E, quando assim é, não existe grande espaço para prosa imaginativa. Seria inútil. Redundante. Em Inglaterra, onde a vida é previsível e civilizada (ou previsível porque civilizada), o "non sense" transferiu-se da vida para a literatura. De Jonathan Swift a Laurence Sterne, de Evelyn Waugh e Kingsley Amis, a sátira é abundante porque funciona como contraste. Mas quando a realidade já é surreal, é a realidade que se transforma em ficção. Quem precisa de livros quando basta olhar pela janela?
Mainardi olhou pela janela. Descreveu a paisagem. Mas falhou no essencial: em 2006, Lula era reeleito, ou seja, "absolvido pelas urnas", como dizem seus acólitos. Num dos melhores textos do livro, Mainardi compara-se ao Coiote do desenho animado, que persegue obsessivamente o Papa-Léguas para ser derrotado no final. Uma pena? Para o Brasil, com certeza. Para os leitores, longe disso. "Lula é Minha Anta" ficará como testemunho de uma época e exercício literário pleno de violência sarcástica. E, além disso, ninguém assiste ao desenho animado para ver o Papa-Léguas.
Olá, Diogo. Como é que você está?
Estou de bermuda e chinelo, como sempre. Na minha frente, o computador. À direita, pela janela, a praia de Ipanema. Choveu muito: mar marrom e areia cheia de protozoários. Na sala, meu caçula está com a TV ligada, assistindo a um episódio de "Little Einsteins". De vez em quando, influenciado pelo desenho, ele ergue os braços e grita: Johann Sebastian Bach! Felix Mendelssohn!
Nunca assisti a esse desenho. A minha infância foi deliciosamente corrompida pelo Walt Disney.
A minha foi miseravelmente corrompida pelo Pepe Legal.
Que memórias você tem da infância? Nada de clichês, e pode falar das empregadas.
Tive uma infância clichê. Inclusive no que se refere às empregadas.
Falando do Brasil: você já está a preparar o seu exílio na Europa?
Dependo do trabalho, e o trabalho, atualmente, está no Brasil. Já fui um imigrante brasileiro na Europa. Agora sou um retirante paraibano no Rio de Janeiro.
Isso significa que se surgir trabalho na Europa você abandona o país na hora?
Retirante só migra em período de seca.
Mas você sabe que a Europa é o último sítio do mundo, depois de Bagdá, para trabalhar.
É por isso que eu relaciono a Europa com o ócio. Ou com a literatura, que é a expressão envergonhada do ócio.
Antes de qualquer pergunta sobre o seu livro, gostei de ver nele as fotos dos seus filhos brincando com um pelúcia do Lula. Em São Paulo, um amigo mostrou-me o mesmo boneco e disse-me que tinha sido criado por um artista plástico. Ainda tentei comprar um, mas não consegui. Você sabe onde eu posso encontrar esse boneco?
Vou ver se arrumo um boneco extra.
Obrigado. Você não acha que o boneco tem uma graciosidade que falta ao presidente?
Pouco tempo atrás, acordei no meio da noite e flagrei o boneco roubando minha carteira e tentando matar o peixe no aquário.
E o que você fez? Não me diga que pediu impeachment...
Tranquei o boneco no armário da cozinha.
As crônicas de "Lula é Minha Anta" são, em resumo, a história de uma batalha: Mainardi contra Lula e Lula vitorioso, no final, com a reeleição. Você não acha que teria sido preferível ler Flaubert ou Tolstói nesse tempo todo?
No livro, sou personagem, e não autor ou leitor. Como Bouvard e Pécuchet, perdi a lavoura. Como Anna Karenina, fui esmagado por um trem.
A partir do momento em que o "mensalão" foi denunciado por Roberto Jefferson, você apostou tudo em como Lula não seria reeleito. Você não acha que foi demasiado otimista com o seu país?
Tem razão: por um breve período, fui pateticamente otimista com o Brasil. O mensalão, por suas particularidades, ofereceu uma oportunidade histórica para o país, exatamente como "mãos limpas", na Itália. Como de costume, a gente bobeou.
Você não acha que a corrupção, para os brasileiros, não é tão grave como seria para os europeus?
Corrupção é fruto de falta de democracia. Quanto mais avançada é uma democracia, menor o risco de corrupção. Uma imprensa independente ajuda a vigiar a classe política. Um judiciário independente também. Até a arte tem um papel no combate à corrupção. Ela oferece à sociedade ferramentas como iconoclastia, humor, visão crítica, senso estético, senso de proporção, agitação intelectual, inquietude existencial tudo isso aumenta nossa desconfiança e nossa insatisfação em relação às pessoas em geral e aos políticos em particular.
Então o problema central talvez não seja Lula, mas o Brasil.
Exatamente. Lula --o meu Lula-- é metafórico. Talvez até metonímico. Ele representa o que o país tem de pior.
Eu estive no Brasil em dois momentos marcantes dos últimos anos: quando o mensalão estava no auge e nas últimas eleições. E fiquei pasmo com pessoas educadas, fluentes e letradas que diziam que votariam em Lula, não em Alckmin?
Pessoas educadas, fluentes e letradas que votam em Lula? Não conheço. Acho que você está freqüentando demais os jornalistas da Folha de S.Paulo.
Qual a responsabilidade da oposição nesse clima favorável a Lula? Você acha que o "impeachment pelas urnas", que chegou a ser defendido por Fernando Henrique Cardoso, foi ingenuidade ou estupidez?
Fernando Henrique Cardoso não é ingênuo nem estúpido. Acho que os oposicionistas queriam tomar o lugar do Lula sem mexer nos esquemas de corrupção que os beneficiaram no passado e que podem beneficiá-los no futuro.
Ou seja, a oposição é tão corrupta como o presidente?
O lulismo é muito mais perverso: transformou a corrupção em plataforma de governo.
Alckmin: o que correu mal? Você teria votado noutro candidato sem ser de nariz tapado?
Eu não voto. Nem de nariz tapado. Desde o começo, defendi o "impeachment" de Lula. O julgamento do lulismo deveria ter sido político e criminal, e não apenas eleitoral.
Mas você confessou que iria votar Alckmin de nariz tapado. Nem assim foi votar?
Quando percebi o jogo da oposição, avisei que a tese do "impeachment pelo voto" abria a perspectiva de uma "absolvição pelo voto". Como sempre fui contrário a uma absolvição, torci pela eleição do Alckmin. Só não votei nele --e não voto em ninguém-- porque não tenho domicílio eleitoral.
Você é particularmente duro com o jornalismo brasileiro, que teria sido cúmplice de Lula. "O presidente manda. O jornalista publica. O contribuinte paga", eis o aforismo. Depois do mensalão e apesar da reeleição, você acha que mudou alguma coisa?
Agora o contribuinte sabe o que está pagando.
Um de seus melhores textos, "Minha Vida de Coiote", é o retrato de como perseguir Lula se transforma sempre num desastre para o perseguidor como na história do Coiote e do Papa-Léguas. Com todos os processos, ameaças e xingamentos, você nunca pensou simplesmente: "que se dane tudo"?
Como o Papa-Léguas, eu sempre acho que meu próximo plano vai dar certo.
Existe alguma coisa de positivo no Brasil para você? Ironicamente, lendo o seu livro, a coisa mais positiva é a Justiça, que o absolvia nos processos.
O que eu mais gosto no Brasil é minha casa. Fora da minha casa, minha rua, no máximo até a esquina. Institucionalmente, sim: a melhor chance do Brasil --quem sabe a única-- está nos tribunais.
Isso não é um paradoxo? Como explicar que tudo corra mal, exceto a Justiça?
Tenho de apelar para Montesquieu. Sabe como é: aquele lero-lero de separação dos poderes. Como todo o resto, a Justiça pode ser uma porcaria, mas as leis não são. Há um monte de bons juízes e promotores por aí, aplicando-as com rigor.
Por que motivo os petistas nunca acertam com o seu nome? É sempre "Diego", "Diego".
O petismo tem um problema com a língua portuguesa, Juan.
No final do livro, você se despede de Lula. Dessa vez é para valer?
Lula já não existe mais. Hoje em dia, todo mundo sabe que ele é apenas outro Sarney, só que piorado. Acho que dei uma mãozinha para desmascará-lo.
Imagine que o presidente convidava você para um chá ou para outra bebida qualquer. Você iria?
Já tentei entrevistá-lo. O bicho não quer saber de mim. Eu gostaria de encontrá-lo profissionalmente, mas não tenho o menor interesse particular por ele. Considero-o um dos líderes mais aborrecidos do planeta.
Abrindo um pouco mais a conversa: como você observa a política da América Latina --Chávez, Morales e tutti quanti?
Jura que você quer falar sobre essa gente?
Claro. O grotesco diverte-me.
Em excesso, o grotesco enjoa.
Apesar de tudo, seria improvável que Lula seguisse os passos da "revolução bolivariana" de Chávez, não?
Eu sempre reconheci uma qualidade em Lula: ele é maricas demais para se meter numa fria dessas.
E a sociedade brasileira não é a venezuelana, ou é?
Você tem razão: a venezuelana é um tiquinho melhor.
Você tem candidato favorito nas eleições americanas?
Meu preferido é John McCain. Os americanos têm o dever de ajeitar as coisas no Iraque, e o único que capaz de fazê-lo é o velhote.
Meu preferido é Obama, por causa do antiamericanismo mundial. Seria uma lição para o mundo eleger um negro.
Se eu fui demasiado otimista com o Brasil, você está sendo demasiado otimista com o mundo.
E o Brasil? Seria capaz de eleger um negro?
O Brasil seria capaz de eleger uma anta.
Mudando de assunto: você pensa em regressar à ficção?
E quem paga minhas contas?
Bom, você pode escrever colunas e romances.
Não dá tempo. Sou marcha lenta.
A sua ficção, ao retomar a grande tradição satirista européia, parece um corpo estranho na literatura brasileira contemporânea. Você sente isso?
Sinto que é bem melhor pertencer à grande (mas a pequena também serve) tradição satirista européia do que à literatura brasileira contemporânea.
Para um jovem brasileiro com pretensões literárias, que autores você recomendaria?
Leitura é uma questão de afinidade. Depois de esgotar os romances obrigatórios (Quantos são? 300? 400?), o negócio é escolher um filão e mergulhar nele.
Você é regularmente identificado com a "escola Paulo Francis". Você concorda com essa linhagem?
Fui um aluno relapso, mas é claro que estudei nessa escola.
E o que aprendeu com ela?
Como todo aluno relapso, não consegui aprender nada. Mas o professor era ótimo.
O Carnaval está aí: nunca o convidaram para uma escola de samba?
Não. Em compensação, algum tempo atrás, numa tarde de carnaval, pisei num naco de cérebro humano.

João Pereira Coutinho, 40 anos, é colunista da Folha. Reuniu seus artigos para o Brasil no livro "Avenida Paulista" (Record). Escreve quinzenalmente, às segundas-feiras, para a Folha Online.
Publicação original de Folha Online, de 05/02/2008

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