A mulher-bomba
Crusoé teve acesso a uma investigação da Polícia Federal que ficou pelo caminho, apesar dos indícios de que a JBS usou a sede do instituto de Gilmar Mendes para tramar a oferta de 200 milhões de reais para se aproximar de juízes. O caso fez o ministro se afastar de Dalide Corrêa, a sua faz-tudo por 20 anos e personagem central do episódio
08.06.18
A advogada Dalide Corrêa e o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, se conheceram há pouco mais de duas décadas. Ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, quando Gilmar era o advogado-geral da União, Dalide chefiava o departamento jurídico da Caixa Econômica Federal. Como tinham assuntos em comum a tratar, acabaram se aproximando. Começou ali uma sólida relação. Anos mais tarde, já ministro da Suprema Corte, Gilmar convidaria Dalide para ser sua assessora parlamentar. Ainda no começo da amizade, ele viu nela algumas raras qualidades. A principal era a facilidade com que Dalide se relacionava com as pessoas, de dentro e de fora do poder. “A Dalide é uma profissional de relações institucionais. Em pouco tempo ela vira a melhor amiga de qualquer um. É uma pessoa que se comunica bem, conhece todo mundo”, costuma dizer o ministro, ao ser indagado sobre a mulher que, com o passar do tempo, se tornaria quase que seu alterego.
Quando Gilmar se tornou sócio e, depois, o controlador do Instituto Brasiliense de Direito Público, o IDP, foi a Dalide que ele confiou a missão de tocar o dia a dia da instituição — na prática, uma faculdade de direito que também organiza eventos e cursos para servidores públicos. Durante anos, Dalide foi os olhos, os ouvidos e a boca do ministro no IDP. Tinha poderes para falar em nome dele — e para decidir em nome dele. Era a Dalide que cabia, por exemplo, gerenciar os vultosos patrocínios que o IDP passou a receber de algumas das maiores empresas do país. Parte delas, como Crusoé mostrou recentemente, colaborava com as atividades do instituto, na forma de patrocínios, mas fazia questão de não aparecer. Parte delas tinha e tem interesses em curso no tribunal de que Gilmar Mendes faz parte. Em sua defesa, o ministro diz que uma coisa nada tem a ver com a outra. Sustenta que os patrocínios ao IDP nunca interferiram em suas decisões no Supremo. Dalide, porém, com sua decantada aptidão para as “relações institucionais”, sempre soube explorar ao máximo o potencial de atração de parcerias — e patrocínios — à custa da imagem de Gilmar.
O relatório final da investigação: a ex-assessora de Gilmar disse que delegado queria atingir o ministro
Em algumas situações, ela operou alguns contatos — e contratos — capazes de gerar embaraços para o ministro. Um deles, com a Federação do Comércio do Rio de Janeiro (Fecomércio-RJ), acaba de render uma dor de cabeça para Gilmar. Na última quarta-feira, o braço fluminense da Lava Jato pediu à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que questione no Supremo a atuação de Gilmar nos processos criminais que envolvem Orlando Diniz, ex-presidente da federação. Na sexta-feira anterior, o ministro concedeu um habeas corpus a Diniz, preso desde fevereiro sob suspeita de integrar uma quadrilha que desviava dinheiro dos cofres públicos do Rio em parceria com o ex-governador Sérgio Cabral. No período em que Orlando Diniz estava no comando, a Fecomércio patrocinou alguns eventos do IDP. Obra de Dalide, diria o ministro. Em um desses eventos, em 2015, o próprio Diniz esteve presente — na companhia de Gilmar, como Crusoé mostrou ainda na semana passada. Mesmo com a Fecomércio tendo sido patrocinadora de seu instituto, o ministro não se fez de rogado ao receber em seu gabinete o pedido de habeas corpus. E tratou de libertar o velho parceiro do IDP em um dos vinte habeas corpus assinados por ele no últimos 15 dias para soltar presos da Lava Jato no Rio.
Foi essa relação de proximidade via IDP que levou os procuradores a pedir à PGR que levantasse a suspeição ou o impedimento de Gilmar nos processos criminais envolvendo Orlando Diniz (no ofício enviado a Raquel Dodge, por sinal, eles mencionam informações publicadas por Crusoé). Até esta quinta-feira, Gilmar Mendes nada falou sobre o assunto. Não veio a público nem sequer para repetir, mais uma vez, o argumento que carrega na ponta da língua sempre que é indagado sobre eventuais cruzamentos de interesse entre os patrocínios do IDP e as decisões que profere no Supremo: “Isso é coisa da Dalide”. No ano passado, na esteira da delação premiada da JBS, também patrocinadora de seu instituto, o ministro tratou de adotar uma providência urgente. Já antevendo os questionamentos que poderiam vir, o ministro tirou Dalide do IDP. Depois de anos como diretora-geral do instituto, ela estava fora.
O processo de saída de Dalide Corrêa coincide com a eclosão da delação premiada da JBS, empresa com a qual a agora ex-braço-direito de Gilmar mantinha relações estreitas. Tanto que a JBS e o próprio Joesley Batista, acostumados a patrocinar o IDP, passaram a usar o instituto como uma espécie de quartel-general a partir do qual se davam ao desfrute de atuar em Brasília, especialmente na área jurídica. Uma dessas situações, que também coincide com o, digamos, rompimento entre Gilmar e Dalide, virou, literalmente, caso de polícia. Um caso cujos detalhes acabaram relegados aos arquivos secretos da Lava Jato, mas que Crusoé traz à luz nesta reportagem. Era novembro de 2016. Havia um ano que a JBS já patrocinava os eventos do IDP. A relação de Joesley e companhia com o instituto ia às mil maravilhas. A delação premiada ainda não estava nos planos do empresário, mas ele e seu conglomerado já eram alvo de investigações que, entre outras suspeitas, apuravam pagamento de propinas milionárias a autoridades por negócios com fundos de pensão de estatais e em troca da liberação de financiamentos públicos na Caixa e no BNDES. Como as investigações encontravam-se sob a responsabilidade da Justiça Federal de Brasília, Joesley estava decidido que precisava se aproximar dos juízes Ricardo Leite e Vallisney Oliveira, responsáveis pela 10ª Vara, onde corriam os casos. Àquela altura, estava em negociação um acordo de leniência em que a holding da JBS poderia ser obrigada a pagar nada menos do que 11 bilhões de reais. Ele precisava reduzir esse valor, mas para isso dependia da benevolência de um dos magistrados. Em busca de uma solução, ele recorreu a Dalide.
Coube à então super-assessora de Gilmar Mendes tentar promover a aproximação. Joesley e o diretor jurídico da holding, Francisco de Assis, estavam em visita ao IDP. E Dalide tratou de colocá-los frente a frente com Rony Moreira, diretor do Imafe, um instituto criado havia pouco tempo e que tinha como sócios exatamente os dois juízes federais dos quais Joesley queria tanto se aproximar. O encontro se deu no instituto de Gilmar. Dalide diz que foi obra do acaso, pura coincidência. Joesley, que como mostrou a sua própria delação dominava a arte de fazer amigos e conquistar pessoas, se colocou à disposição para, da mesma forma que patrocinava o IDP, patrocinar também o Imafe. Rony Moreira, o diretor do instituto, saiu do encontro animado. E levou a oferta ao conhecimento de Ricardo Leite. O juiz estranhou. Entendeu que poderia estar em curso uma tentativa de aproximação indevida. Quando os termos da delação da JBS vieram à luz, em maio do ano passado, o assunto voltou à tona. Especialmente porque, na famosa gravação da conversa com Michel Temer, Joesley dizia ao presidente que estava conseguindo “segurar” os dois juízes encarregados dos processos que mais o incomodavam àquela altura em Brasília. Ficou no ar, entre aqueles que conheciam o episódio ocorrido meses antes, uma pergunta: na reunião clandestina com Temer, Joesley teria se referido à aproximação promovida pela então auxiliar de Gilmar Mendes? Houve quem tivesse certeza que sim. E aí teve início uma das histórias mais nebulosas (e mais bem guardadas) dos bastidores da Operação Lava Jato.
Com o conhecimento da cúpula da Polícia Federal e do comando da força-tarefa da Lava Jato em Brasília, um delegado da inteligência da PF que tomara conhecimento do encontro na sede do IDP procurou o juiz Ricardo Leite pessoalmente, para tentar convencê-lo a prestar depoimento relatando o que havia acontecido no encontro em que Joesley se dispôs a patrocinar seu instituto – e detalhando, inclusive, a participação da assessora do ministro Gilmar Mendes na suposta trama. Com a delação da JBS já pública, e diante da declaração do próprio Joesley de que estava conseguindo cooptar os juízes, seria uma forma de passar a história a limpo. E de o próprio Ricardo Leite esclarecer que não havia topado receber o patrocínio da JBS. Nesse meio tempo, surgiu um dado adicional – grave, gravíssimo. A ponto de ampliar ainda mais o potencial explosivo do enredo: ao delegado havia chegado o relato de que, na conversa na sede do IDP, os participantes haviam comentado que, caso Joesley conseguisse reduzir da forma que planejava a multa a ser arbitrada pelo juiz Ricardo Leite no acordo de leniência, os responsáveis por essa vitória da JBS poderiam ganhar nada menos que 200 milhões de reais.
O juiz Ricardo Leite disse à PF que entendeu o movimento de Joesley como uma tentativa de aproximação indevida
Logo a história ganhou forma: Rony Moreira teria relatado ao próprio Ricardo Leite que foi Dalide quem solicitou à JBS os 200 milhões de reais como forma de conseguir que o magistrado reduzisse a multa de 11 bilhões para 3 bilhões de reais. Ricardo Leite não gostou nada de ouvir o relato. E ficou preocupado com os desdobramentos que a história poderia ter. Discretamente, ele pediu uma reunião com Gilmar Mendes. Quis saber do ministro por que Dalide havia feito aquela aproximação. A conversa foi nervosa. Gilmar garantiu que não tinha conhecimento do episódio. E logo em seguida chamou Dalide para conversar. Era 25 de maio de 2017. Gilmar relatou o que acabara de ouvir do juiz. Disse, textualmente, ter ouvido que ela teria solicitado 200 milhões de reais para ajudar a JBS a conseguir o que queria na 10ª Vara Federal. Dalide negou que tivesse tratado de valores durante o encontro na sede do IDP.
Sabedores da proporção que o caso poderia ganhar àquela altura, os personagens envolvidos trataram de tomar suas providências. Gilmar cobrou explicações de Leandro Daiello, então diretor da Polícia Federal. Quis saber por que, afinal, um delegado da inteligência da PF estava tentando convencer o juiz Ricardo Leite a prestar um depoimento relatando o episódio ocorrido na sede do IDP. O ministro viu na iniciativa do delegado uma tentativa de envolvê-lo nas tramoias da JBS. Estaria a Polícia Federal executando uma operação clandestina para tentar fisgá-lo? Na conversa, Daiello, polidamente tratou de acalmar o ministro. E negou que houvesse uma ação institucional para investigá-lo. O delegado que procurou o juiz Ricardo Leite para tentar convencê-lo a relatar a “tentativa de aproximação indevida” ocorrida na sede do IDP teria tomado a inciativa por conta própria, embora houvesse comunicado a situação a seus superiores. Gilmar não se deu por satisfeito. Sugeriu a Dalide que, para evitar que a suspeita sobre ela e o IDP se avolumasse, procurasse a PF e pedisse uma investigação sobre o ocorrido. E assim foi feito.
A ideia era que Dalide tomasse a rédea da história. E denunciasse o delegado que tentou tirar do juiz Ricardo Leite um depoimento que a incriminaria. Para dar peso à denúncia que faria, ficou acertado que Dalide iria à Polícia Federal na companhia de um delegado conhecido na corporação. Assim seu caso seria tratado com a gravidade que merecia. De novo, assim foi feito. O escolhido para acompanhá-la foi um certo Fernando Segovia, amigo da própria Dalide e próximo também do ministro Gilmar Mendes (Segovia, igualmente íntimo de políticos do MDB, seria nomeado meses depois diretor da Polícia Federal). O objetivo foi atingido: a queixa de Dalide virou uma investigação. Não para apurar a possível existência de crime por parte de Joesley ao oferecer patrocínio ao instituto dos juízes encarregados de seus processos, mas para averiguar a conduta de Felipe Leal, o delegado da inteligência que tentou dar partida a uma investigação mais ampla. À PF, Dalide disse ter tomado conhecimento, por meio de Gilmar Mendes, que o delegado “teria insistido na necessidade de o juiz (Ricardo Leite) formalizar uma declaração de conduta criminosa” atribuída a ela. Afirmou ainda que o intuito do delegado, ao tentar convencer o juiz a relatar o episódio, tinha por objetivo “atingir o ministro Gilmar Mendes” e “colocar em total descrédito a seriedade de sua atuação”.
Paralelamente, o próprio Gilmar tratou de desarmar a bomba. Logo depois da conversa que teve com o ministro, em seu gabinete do Supremo, Dalide correu para tirar satisfação com Rony Moreira, personagem da origem de toda a história, o diretor do Imafe que havia passado adiante o teor da conversa que haviam tido com Joesley no IDP. Os dois marcaram o encontro em uma padaria. Dalide gravou a conversa. E tentou tirar de Rony Moreira uma declaração negando que ela tivesse pedido os tais 200 milhões. Assustado, e alertado das consequências criminais que o episódio poderia ter, Rony procurou amenizar o relato. Instado pela interlocutora, na conversa gravada, ele desta feita negou que ela tivesse tocado em assunto de dinheiro. Na sequência, Dalide levou uma cópia da gravação para Gilmar Mendes. Seria a prova de que tudo não havia passado de um grande mal-entendido. Gilmar, então, deu mais um passo no sentido de acalmar os ânimos dos envolvidos.
Três dias depois de ter sido procurado pelo juiz Ricardo Leite, que queria satisfação sobre a postura de Dalide no encontro na sede do IDP, Gilmar convidou o magistrado para uma nova conversa. Agora na sua casa. Era um domingo. Na companhia de sua mulher, Ricardo Leite foi então ao endereço do ministro. Gilmar o aguardava, também com a sua mulher, Guiomar Feitosa. O juiz não sabia, até porque não tinha sido avisado disso, mas Dalide estava lá. E eis que ela se materializou na frente dele. Gilmar queria passar a história a limpo. E, numa caixa de som portátil, pôs para tocar a gravação da conversa de Dalide com Rony, aquela da padaria, em que a história foi colocada em panos quentes. Ricardo Leite ainda ensaiou cobrar explicações da então braço-direito do ministro, desta vez pessoalmente, mas não havia clima para isso. O ambiente estava pesado. O juiz percebeu que o recado, ali, era claro: a história tinha mesmo que ficar restrita a um grande mal-entendido. O juiz foi embora contrariado.
A “sindicância investigativa” para apurar a conduta do delegado Felipe Leal foi instaurada em 26 de junho do ano passado. Todos os personagens da trama, à exceção de Gilmar Mendes, foram ouvidos: Dalide Corrêa, Rony Moreira, o juiz Ricardo Leite e, claro, o próprio Felipe Leal. Ao final, a Polícia Federal concluiu não ter havido qualquer desvio de conduta por parte do delegado – e que ele estava no estrito cumprimento do seu dever. Nenhum outro procedimento foi aberto, porém, para apurar a história de fundo. O Imafe, o instituto do juízes federais de Brasília ao qual Joesley Batista queria dar dinheiro, acabou fechado. Foi nessa época que Gilmar se deu conta de que precisava tirar Dalide de suas proximidades. Não antes de ela se envolver em outro imbróglio que envolveu o nome do ministro. Tão logo a delação da JBS veio a público, Dalide se encarregou de procurar uma advogada de Brasília que trabalhava para a holding de Joesley. Queria que ela fosse a São Paulo apurar em que medida as revelações contidas na delação avançavam sobre o Judiciário. Dalide estava especialmente preocupada com mensagens — cujo teor, até hoje, é guardado a sete chaves — que havia trocado com Francisco de Assis, o diretor jurídico da JBS. “A Dalide ferrou o Gilmar”, resumiu a advogada da JBS em uma conversa já conhecida e atualmente em poder da Procuradoria-Geral da República.
A Crusoé, Dalide Corrêa negou que tenha deixado o IDP por causa de sua relação com a JBS e das histórias rumorosas que dela derivaram. “Eu já vinha sinalizando havia mais de um ano que pretendia sair. Inclusive tinha começado a fazer a transição para a nova direção (foi o filho de Gilmar, Francisco Mendes, quem assumiu o comando do instituto). Não tem ligação com esse episódio com a JBS”, disse ela. Sobre a confusão em torno do suposto pedido de dinheiro para ajudar Joesley Batista a resolver os problemas que queria na Justiça Federal de Brasília, ela afirmou nunca ter tratado desse assunto: “Pergunta à própria JBS se alguma vez eu pedi dinheiro para eles que não fosse dinheiro para eventos do IDP. O próprio Rony Moreira acabou confessando que ele criou essa história dos 200 milhões”. Depois de perder o posto de diretora-geral do IDP, a ex-faz-tudo de Gilmar Mendes abriu um escritório de advocacia no nobilíssimo Lago Sul de Brasília. Ela passou a estar fisicamente distante, mas segue próxima do ministro. Tanto que é acionada por ele para responder a questionamentos sobre assuntos como os rumorosos patrocínios do IDP. Foi assim quando Crusoé publicou reportagem sobre o assunto. Na ocasião, Dalide Corrêa tratou de assumir tudo – e de eximir Gilmar Mendes de qualquer responsabilidade. Como ele mesmo diz: “Isso é coisa da Dalide”. A mulher-bomba está, ainda, sob controle.
Fonte: Revista Crusoé (para assinantes)
Fonte: Revista Crusoé (para assinantes)
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