Estado Islâmico, uma 'ameaça sem precedentes'
· João Paulo Charleaux
23/Nov 18h29 (atualizado 23/Nov 22h49)
Do surgimento, no Iraque, à expansão para a Síria e os ataques em Paris,
grupo extremista cresceu rapidamente, deixando atrás de si um rastro de
destruição e projetando uma ameaça de alcance mundial
O rápido e brutal avanço do EI (Estado Islâmico) - também conhecido pelo acrônimo árabe Daesh - foi capaz de, em poucos anos, contribuir para a maior crise de refugiados em solo europeu desde o fim da Segunda Guerra Mundial, dar novo impulso às disputas históricas que opõem EUA e Rússia desde a Guerra Fria e espalhar o terror pela França, com a série de ataques que deixou 130 mortos em Paris, no dia 13 de novembro de 2015.
O grupo extremista conquista adeptos até mesmo entre jovens europeus e americanos, enquanto luta para erguer um “califado” regido por leis divinas no Oriente Médio e no norte da África. Este texto trata das origens e pretensões do grupo que em poucos anos se converteu numa das maiores ameaças terroristas do mundo.
O QUE é o Estado Islâmico#
É um grupo armado extremista originado da Al-Qaeda que luta para erguer um Estado teocrático e destruir todos os que se oponham à sua visão radical do Islã. O grupo está presente hoje na Síria e no norte do Iraque, controlando manchas de territórios não contínuos que somam mais de 250 mil km2, o equivalente ao Reino Unido.
Seus membros são sunitas, corrente majoritária a qual pertencem entre 87% e 90% da população islâmica mundial. Mas sua interpretação radical do Alcorão, o livro sagrado dos muçulmanos, provoca rechaço mesmo entre seguidores da religião. O grupo acusa correntes minoritárias, como xiitas e alauítas, de apostasia - renúncia de uma crença, abandono da fé - e clama para si a herança autêntica e exclusiva de Maomé, fundador do islamismo.
"O Estado Islâmico constitui uma ameaça global à paz e à segurança internacionais sem precedentes"
O Estado Islâmico luta para estabelecer um “califado” - termo aplicado a um regime político-religioso utópico, de pretensões expansionistas e inspiração divina. Ao longo da histórica, quatro dinastias reivindicaram para si o nome “califado” até que, em 1924, Mustafa Kemal Ataturk, fundador da Turquia moderna, decretou a extinção do califado representado pelo Império Otomano, que, em seu apogeu, incluía o Oriente Médio, norte da África, Cáucaso e Leste Europeu.
QUANDO o grupo foi criado#
A trajetória do Estado Islâmico é marcada por um desejo permanente de internacionalização, iniciado da resistência contra a ocupação americana no Iraque. O grupo é, em sua origem, um desdobramento internacional da Al-Qaeda, fundada pelo saudita Osama bin-Laden.
Em 2002, Bin Laden se aliou no Afeganistão ao jordaniano Abu Musab al-Zarqawi. No ano seguinte, Zarqawi partiu para o Iraque com a missão de reunir insurgentes e abrir uma “filial” da Al-Qaeda capaz de combater as forças de coalizão lideradas pelos EUA. Na época, os americanos tinham invadido o território iraquiano numa guerra que terminaria com a captura e a execução do então presidente Saddam Hussein, o início de um longo período de desintegração do governo e a ascensão de uma forte resistência armada.
Zarqawi morreu num bombardeio americano em 2006. Sua “filial” foi assumida pelo sucessor Abu Bakr al-Baghdadi - um ex-prisioneiro de guerra dos americanos - e teve o nome mudado para “Estado Islâmico do Iraque”. O grupo, então, passou a funcionar como um guarda-chuva de outras organizações menores. Baghdadi avançou sobre várias cidades do norte do Iraque, se apropriando de armas e munições, aumentando o poder de fogo e seu alcance territorial.
Fortalecido em solo iraquiano, o grupo viu no início da desestabilização da vizinha Síria, em 2011, uma possibilidade de expansão de sua influência e de internacionalização. Em meio à profusão de grupos rebeldes sírios que lutam contra o presidente sírio Bashar al-Assad, foi fundado, em 2013, o “Estado Islâmico do Iraque e do Levante”. Longe de ser um detalhe, o novo nome marca exatamente a pretensão de erguer um califado global, além fronteiras, e não restrito ao Afeganistão, ao Iraque ou à Síria.
COMO o grupo extremista atua#
Desde o início, o grupo recorre a atentados a bomba contra alvos civis e militares de grande visibilidade, a exemplo dos ataques simultâneos realizados em Paris no dia 13 de novembro, que deixaram 130 mortos. É atribuído a Zarqawi, por exemplo, o ataque com um caminhão carregado de explosivos na frente do escritório da ONU, em Bagdá, em 2003, que provocou a morte do brasileiro Sérgio Vieira de Mello e de outras 22 pessoas.
Como o êxito do terrorismo depende diretamente de sua visibilidade e de sua repercussão, esse padrão foi seguido ao longo dos anos pelo Estado Islâmico. Ficaram famosas as execuções públicas e decapitações de prisioneiros, editadas em vídeo com rigor técnico e alta qualidade de som e imagem. Seus membros também publicam em redes sociais fotos e vídeos da destruição de alguns dos mais valiosos patrimônios arqueológicos da humanidade.
Conforme o grupo avançou sobre as maiores cidades do Iraque e da Síria, foi se apoderando também de um vasto arsenal bélico que antes pertencia a forças regulares, aumentando seu poder de fogo e o perfil de suas ações. Além disso, se apropriou de poços de petróleo e passou a negociar o produto no mercado negro, como forma de arrecadar recursos e financiar suas ações.
Em relação às populações locais, o grupo alterna um papel de provedor de proteção e serviços para seus adeptos e de carrasco cruel para os que se opõem. Relatórios da ONU falam de escravidão sexual imposta a crianças de 9 anos, tráfico de mulheres e crucificações em praça pública.
QUEM combate e quem apoia o grupo#
O Estado Islâmico é apoiado por milhares de sunitas no Iraque e na Síria. Essa corrente do Islã passou a ser perseguida mais duramente tanto no governo do presidente sírio, Bashar al-Assad, alauíta, quanto no governo do ex-primeiro-ministro iraquiano Nouri al-Maliki, xiita, após 2011, o que criou um terreno fértil para o discurso de proteção e revanche sectária do Estado Islâmico, em nome de uma população que passou a ser perseguida.
Fora isso, nenhum país do mundo apoia oficialmente o grupo. Da Rússia aos EUA, passando pela própria Síria, pelo Irã e pelos demais atores regionais, todos condenam unanimemente o Estado Islâmico. Mesmo líderes muçulmanos rechaçam a destruição do patrimônio histórico, as execuções sumárias e os atentados contra civis, muitos deles realizados dentro de mesquitas xiitas.
Não apenas Estados, mas também grupos armados presentes na Síria se opõem igualmente ao Estado Islâmico. O maior exemplo são os peshmerga, que defendem territórios curdos do avanço do EI.
Porém, apesar da convergência aparente no discurso, há dois grandes blocos divergentes representados pela Rússia e pelos EUA. A diferença está na nuance do discurso e na ação militar em si. Os russos são simpáticos ao presidente sírio. É nessa condição que eles combatem não apenas o Estado Islâmico, mas qualquer outro grupo rebelde que represente uma ameaça ao governo. Já os EUA apoiam grupos rebeldes anti-Assad que são combatidos por Moscou. Para a Casa Branca, tirar Assad do poder e derrotar o Estado Islâmico são prioridades equivalentes.
ONDE o grupo está presente e aonde quer chegar#
O Estado Islâmico controla hoje grande parte do norte da Síria e do Iraque, mantendo focos menores de presença no Afeganistão. Esse controle, no entanto, está mais concentrado em grandes cidades. Embora apareça frequentemente representado por uma mancha sobre o mapa, não significa que o grupo tenha conseguido redesenhar fronteiras e impedir incursões inimigas em toda a zona, mas que ele controla lugares estratégicos e simbólicos daquele setor.
AVANÇO#
A própria expansão do Estado Islâmico tem provocado divisões internas no grupo a respeito da conveniência ou não criar de fato um Estado islâmico com fronteiras delimitadas. Isso contradiz um caráter fundamental dos grupos terroristas, que é o da furtividade e da desobrigação de resguardar um território específico contra seus inimigos. Grupos rebeldes evitam ter de gerir recursos públicos e garantir condições de subsistência de uma população que viva dentro de suas fronteiras. A criação de um Estado de fato é o contrário disso. Experiências como a do Hamas e do Fatah nos territórios palestinos mostram os desafios de assumir um governo. Daí a relutância de parte do Estado Islâmico em concretizar um plano de dominação que traga consigo o ônus da administração pública.
O dilema de se tornar um Estado#
“As pessoas pediam para o governo abrir um hospital por meses. Foi só o Estado Islâmico invadir que a instituição voltou a funcionar. Eles (a população) não gostam do Estado Islâmico, mas a alternativa é um não governo, ou um governo que os prejudica”
“(Se tornar um Estado) obriga a organização a assumir a responsabilidade de realmente controlar e defender um território definido e a população dentro dele. Isso significa que eles (EI) não só têm de policiar milhões de pessoas que eles controlam, mas também têm de alimentar e cuidar deles, cuidar de um exército, um judiciário, um serviço de receita fiscal etc. O Hamas descobriu quando ele assumiu o controle de 1,8 milhão de palestinos em Gaza que ele teria de lidar com um dilema permanente: alimentar as pessoas ou lutar contra o inimigo”
Vá ainda mais fundo#
- O Brookings Institute publicou em setembro um debate de especialistas sobre as contradições de o Estado Islâmico virar um Estado de fato (em inglês).
- O "The New York Times" mantém dezenas de mapas explicativos sobre a ação do Estado Islâmico na Síria e no Iraque.
- Em agosto de 2014, a VICE News publicou um documentário de 42 minutos, gravado nas fileiras do Estado Islâmico. O que mais impressiona no material é o acesso e o contato próximo com os guerrilheiros na frente de batalha.
- Fonte: Nexo
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