A Justiça e os decaídos
31/05/2016, 11h36
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Tommaso Buscetta é provalmente o mais notório criminoso que, preso, resolveu colaborar com a Justiça. Um detalhe muitas vezes esquecido é que ele foi preso no Brasil, onde havia se refugiado após mais uma das famosas guerras mafiosas na Sicília. No Brasil, continuou a desenvolver suas atividades criminosas através do tráfico de drogas para a Europa. Por seu poder no Novo e no Velho Mundo, era chamado de “o senhor de dois mundos”.
Após sua extradição para Itália, o célebre magistrado italiano Giovanni Falcone logrou convencê-lo a se tornar um colaborador da Justiça. Suas revelações foram fundamentais para basear, com provas de corroboração, a acusação e a condenação, pela primeira vez, de chefes da Cosa Nostra siciliana. No famoso maxiprocesso, com sentença prolatada em 16/12/1987, trezentos e quarenta e quatro mafiosos foram condenados, entre eles membros da cúpula criminosa e o poderoso chefão Salvatore Riina, que, pela violência de seus métodos, havia ganho o apelido de “a besta”. Para ilustrar a importância das informações de Tommaso Buscetta, os magistrados italianos admitiram que, até então, sequer conheciam o verdadeiro nome da organização criminosa. Chamavam-na de Máfia, enquanto os próprios criminosos a denominavam, entre si, de Cosa Nostra.
Sammy “Bull” Gravano era o braço direito de John Gotti, chefe da Família Gambino, uma das quais dominava o crime organizado em Nova York até os anos oitenta. John Gotti foi processado criminalmente diversas vezes, mas sempre foi absolvido, obtendo, em decorrência, o apelido, na imprensa, de “Don Teflon”, no sentido de que nenhuma acusação “grudava” nele. Porém, através de uma escuta ambiental instalada em seu local de negócios e da colaboração de seu braço direito, foi finalmente condenado à prisão perpétua nas Cortes Federais norte-americanas, o que levou ao desmantelamento do grupo criminoso que comandava.
Mario Chiesa era um político de médio escalão, responsável pela direção de um instituto público e filantrópico em Milão. Foi preso em flagrante, em 17/02/1992, por extorsão de um empresário italiano. Cerca de um mês depois, resolveu confessar e colaborar com o Ministério Público Italiano. Sua prisão e colaboração constituem o ponto de partida da famosa Operação Mãos Limpas, que revelou, progressivamente, a existência de um esquema de corrupção sistêmica que alimentava, em detrimento dos cofres públicos, a riqueza de agentes públicos e políticos e o financiamento criminoso de partidos políticos na Segunda República italiana.
Nenhum desses três indivíduos foi preso ou processado para se obter confissão ou colaboração. Foram presos porque faziam do crime a sua profissão. Tommaso Buscetta foi preso pois era um mafioso e traficante. Sammy Bull Gravano, um mafioso e homicida. Mario Chiesa, um agente político envolvido em um esquema de corrupção sistêmica, no qual a prática do crime de corrupção ou de extorsão havia se transformado na regra do jogo.
Presos na forma da lei, as suas colaborações foram essenciais para o desenvolvimento de casos criminais que alteraram histórias de impunidade dos crimes de poderosos nos seus respectivos países.
Pode-se imaginar como a história seria diferente se não tivessem colaborado ou se, mesmo querendo colaborar, tivessem sido impedidos por uma regra legal que proibisse que criminosos presos na forma da lei pudessem confessar os seus crimes e colaborar com a Justiça.
Pode-se imaginar como a história seria diferente se não tivessem colaborado ou se, mesmo querendo colaborar, tivessem sido impedidos por uma regra legal que proibisse que criminosos presos na forma da lei pudessem confessar os seus crimes e colaborar com a Justiça.
É certo que a sua colaboração interessava aos agentes da lei e a própria sociedade, vitimada por grupos criminosos organizados. Essa é, aliás, a essência da colaboração premiada. Por vezes, somente podem servir como testemunhas de crimes os próprios criminosos, então uma técnica de investigação imemorial é utilizar um criminoso contra seus pares. Como já decidiu a Suprema Corte norte-americana, “a sociedade não pode dar-se ao luxo de jogar fora a prova produzida pelos decaídos, ciumentos e dissidentes daqueles que vivem da violação da lei” (On Lee v. US, 1952).
Mas é igualmente certo que os três criminosos não resolveram colaborar com a Justiça por sincero arrependimento. O que os motivou foi uma estratégia de defesa. Compreenderam que a colaboração era o melhor meio de defesa e que, somente através dela, lograriam obter da Justiça um tratamento menos severo, poupando-os de longos anos de prisão.
A colaboração premiada deve ser vista por essas duas perspectivas. De um lado, é um importante meio de investigação. Doutro, um meio de defesa para criminosos contra os quais a Justiça reuniu provas categóricas.
Preocupa a proposição de projetos de lei que, sem reflexão, buscam proibir que criminosos presos, cautelar ou definitivamente, possam confessar seus crimes e colaborar com a Justiça. A experiência histórica não recomenda essa vedação, salvo em benefício de organizações criminosas. Não há dúvida de que o êxito da Justiça contra elas depende, em muitos casos, da traição entre criminosos, ou seja, do rompimento da reprovável regra do silêncio. Além disso, parece bastante difícil justificar a consistência de vedação da espécie com a garantia da ampla defesa prevista em nossa Constituição e que constitui uma conquista em qualquer Estado de Direito. Solto, pode confessar e colaborar. Preso, quando a necessidade do direito de defesa é ainda maior, não. Nada mais estranho. Acima de tudo, proposições da espécie parecem fundadas em estereótipos equivocados em relação ao que acontece na prática, pois muitos criminosos, mesmo em liberdade, decidem, como melhor estratégia da defesa, colaborar, não havendo relação necessária entre prisão e colaboração.
Na assim denominada Operação Lava Jato, considerando os casos já julgados, é possível afirmar que foi identificado um quadro de corrupção sistêmica, no qual o pagamento de propina tornou-se regra na relação entre o público e o privado. No contexto, importante aproveitar a oportunidade das revelações e da consequente indignação popular para iniciar um ciclo virtuoso, com aprovação de leis que incrementem a eficiência da Justiça e a transparência e a integridade dos contratos públicos, como as chamadas dez medidas contra a corrupção apresentadas pelo Ministério Público ou outras a serem apresentadas pelo novo Governo. Leis que visem limitar a ação da Justiça ou restringir o direito de defesa, a fim de atender interesses especiais, não se enquadram nessa categoria.
Sergio Fernando Moro, Juiz Federal*
– Publicado em O Estado de S.Paulo nesta terça, 31
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