sábado, 11 de junho de 2016

Um novo rosto na polícia

Um novo rosto na polícia
Quem é a delegada carioca Cristiana Bento, que ganhou a admiração das mulheres ao enfrentar a cultura do estupro

 Crédito: Stefano Martini

MUDANÇA “Estamos tratando a adolescente exclusivamente como vítima. Sua imagem foi exposta de maneira vexatória”, afirma Cristiana Bento (Crédito: Stefano Martini)
GISELE VITÓRIA
10.06.16 - 19h30 - Atualizado em 10.06.16 - 19h57
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“E então, mãe…? Foi estupro ou não foi estupro?” Ao chegar em casa, na segunda-feira 6, a delegada Cristiana Bento achou graça no interesse repentino da filha de 14 anos, e no discreto sinal de admiração dela por seu trabalho. “Menina, menina, vai estudar…”, retrucou a mãe durona, sem jamais perder a ternura com a filha tranquila e estudiosa. Era a pergunta que o Brasil fazia. Titular da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima há um ano, ela acabava de assumir o caso que chocou o país e levou multidões de mulheres às ruas. Cristiana ganhou aplausos pelo Brasil afora por sua linha de conduta no caso e ao se posicionar publicamente em defesa da adolescente C.B., 16 anos, vítima de um estupro coletivo. “Fiquei surpresa com a repercussão. Estou cumprindo a lei, fazendo o trabalho que sempre fiz”, minimiza. É a lei 12.015, de 2009, no artigo 213 do Código Penal.
A delegada pensou na filha quando conheceu C.B. em seu primeiro depoimento à polícia.  Pensou de novo quando a adolescente vítima do estupro coletivo no Morro do Barão, no Rio, passou a ser desacreditada. A relação da jovem com traficantes de drogas e seu estilo de vida em bailes funks, com consumo de drogas, álcool e sexo, a transformaram praticamente em culpada dias após a denúncia. “Essa menina só tem 16 anos, sua personalidade ainda não está formada. Ela não tinha noção de que era violentada desde os 12 anos, quando engravidou de um traficante.  Um celular importava mais que sua vida. Antes de julgar, devemos pensar: podia ser sua filha. Está faltando amor ao próximo”, diz. Cristiana mudou o curso da história ao enfrentar a cultura do estupro, que culpa a vítima. “Essa investigação está devolvendo dignidade a essa jovem. Ela foi estuprada duas vezes: pelos estupradores e por ter sido negligenciada pelo Estado,” declarou. “Estamos tratando-a exclusivamente como vítima. A sua imagem foi exposta de forma vexatória.”
 OPERAçÃo Cristiana no Morro do Barão, na quinta-feira 9, após achar a primeira casa onde C.B. dormiu

OPERAÇÃO Cristiana no Morro do Barão, na quinta-feira 9, após achar a primeira casa onde C.B. dormiu
A convicção da policial de 42 anos de que C.B foi, sim, estuprada, era o que sociedade queria ouvir. Provavelmente não foram 33 homens, o que não torna a violência menos hedionda. Até o momento, são seis envolvidos, dois suspeitos press (Raí de Souza e Raphael Duarte Belo), e prisões preventivas decretadas para cinco foragidos. O crime ficou configurado e sua extensão está sendo investigada. Cristiana  debruça-se sobre o inquérito e aponta que o segundo vídeo descoberto comprova o estupro de vulnerável – C.B. se encaixa na qualificação por não ter podido oferecer resistência ao ato. Ela estava dopada. O  vídeo mostra um homem introduzindo um batom em sua vagina. No áudio, um homem diz: “Para o que, porra?”.
Cristiana já era conhecida por ter revelado uma rede de pedofilia no Rio. Prendeu uma professora que abusava de crianças na creche onde trabalhava e levava-as para um advogado. Desde que  liderava a Delegacia da Mulher em Duque de Caxias (RJ), priorizava as investigações dos crimes sexuais.  “São casos delicados. As vítimas devem ser tratadas de outra forma”. Nas estatísticas que montou, verificou um volume cada vez maior. “As mulheres vítimas de violência levavam seus filhos”, conta. Professora de Processo Penal da Faculdade  de Direito Cândido Mendes, no Rio, tornou-se uma especialista em casos de crimes sexuais. Uma vez, partiu seu coração ouvir de uma menina de 4 anos, sentada em seu colo na delegacia: “Ele fez a coisa feia”. A criança falava do padrasto abusador.
Ela não se esquece de outra cena: uma garota de 16 anos chega à DCAV carregando um urso de pelúcia ao lado da mãe. Elas foram denunciar estupros do próprio pai da menina. A mãe descobriu porque desconfiava que o marido estava traindo-a e instalou um gravador no carro. “Uma coisa é você ouvir falar que o pai abusou da filha. Isso em si já é hediondo. Mas quando você ouve a gravação na hora do ato, a aflição da menina pedindo que o pai pare, é horroroso”, relata. Nesse caso, a delegada intimou o pai da adolescente. Ele achou que se tratava de uma queixa da esposa. “O sr. está preso”, decretou Cristiana, enquanto o estuprador se desfigurava ao ouvir o áudio. Antes de mandá-lo para a cela, delegada mandou que sua calça comprida fosse cortada para evitar que ele se enforcasse na prisão. Tempos depois, mãe e filha voltaram. Estavam em dificuldades financeiras e viviam o dilema das vítimas de violência doméstica que frequentemente são agredidas por quem amam. “A menina pediu que o soltasse. Ela me disse que, apesar de tudo, ele era um bom pai”, conta. “Infelizmente, ela não tinha parâmetros para saber o que é um bom pai.” Cristiana faz esse paralelo com o caso de C.B. Inserida no ambiente do tráfico e nos valores daquela cultura,a  jovem não teria consciência da violência a que era submetida. “Ela foi estuprada aos 12 anos. Teve um filho com um traficante, que morreu. Foi estuprada em outra ocasião também.”
“Recebi ameaças de traficantes, mas não me intimido”
Cristiana Bento, delegado
Perfumada com Chanel no 5 – que alterna com 212 Sexy, de Carolina Herrera-, Cristiana tem 1.60 e 54 quilos. Pratica corrida e gostou de assistir  “Eternamente Alice” no cinema. Costuma usar uma correntinha com um crucifixo. “É uma proteção”, diz. “Mas antes usava um colar com um pingente de algemas.” O crucifixo foi presente do marido, oficial do Exército, que ela conheceu na época em que estudava Direito na Universidade Gama Filho, por onde se formou em 1998. Cristiana é evangélica. Tem orações como hábito. A fé é de família. “Já recebi ameaças de traficantes ligados a esse caso. Mas não me intimido. Jesus está comigo. E nós tomamos nossos cuidados.” Ela começou como oficial de justiça. “Nunca quis ser delegada. Eu queria ser juiza”, conta. “Mas fiz concurso e me encontrei nessa área”, diz. Ela lembra de um texto sobre um menino que lançava conchas no mar para salvá-las.. “Não podemos salvar todas, mas se puder salvar uma menina desses crimes, ela será salva.”
“As pessoas desconhecem o que é estupro pela nova lei”
Cristiana Bento não para. “Nunca dá para ter certeza onde ela está. A dra. fica entre a delegacia, a Cidade da polícia, participando de audiências, e em diligencias”, explica a recepcionista da DCAV, que fica em um prédio histórico no centro do Rio de janeiro. Na delegacia, Cristiana falou a ISTOÉ:
ISTOÉ – A população é devidamente esclarecida sobre o que é estupro hoje?
Cristiana Bento – Não, as pessoas não tem esse esclarecimento. É importante que a mídia esclareça. As pessoas desconhecem o que é estupro hoje. Antes da lei de 2009, estupro era a violência que envolvia a penetração do penis na vagina. A violência com sexo anal, por exemplo, não se enquadrava como estupro. Era ato libidinoso. Com a nova lei, um beijo à força pode ser considerado estupro. Mas é claro que há as proporções dos crimes. E cabe aos juízes avaliar. (O artigo 231 define: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.” Se a vítima é menor de 18 ou maior de 14, a pena  de reclusão é de 8 a 12 anos.)
ISTOÉ – Quando encerra o inquérito? 
Cristiana – Logo. Precisamos ouvir C.B. novamente e é importante reconstituir detalhes do crime. Só vou descansar quando relatar o inquérito. Se há um crime e você demora com o inquérito policial, não há Justiça. Justiça tardia não é justiça. A população espera uma resposta mais rápida do Estado.
ISTOÉ – A sra. é a favor do aborto em casos de estupro?
Cristiana – Sei que é muito dificil, mas sou contra o aborto em qualquer hipótese. É uma vida autônoma. Ninguem tem o direito de interromper a vida do outro. Defendo que se deve aguardar o parto e entregar o bebê para a adoção. Nunca matar.

Colaborou Helena Borges

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